A IA vai permitir conversar com os animais? Linguagem animal e humana têm semelhanças? A comunicação entre humanos e outras espécies é possível? Alguns pesquisadores começam a ventilar a ideia… Pelo visto, a IA não é apenas sobre fazer chatbots mais persuasivos ou criar arte digital.
Antes de começar, uma pergunta rápida: Será que os cachorros entendem nossa linguagem? Clica aqui pra saber o que a ciência tem a dizer sobre os “button dogs”.
Um corvo pode fazer uma ferramenta para se alimentar? Parece que sim. O Corvo da Nova Caledônia apresentou esse comportamento sofisticado ao escolher um galho e tirar suas folhas para criar um gancho perfeito. E se algo dá errado, ele descarta e começa de novo, mas quando dá certo, ele habilmente utiliza essa ferramenta para pegar um inseto escondido em uma fenda. Este é um comportamento sofisticado que até recentemente acreditava-se ser uma exclusividade dos seres humanos.
Christian Rutz, um ecologista comportamental da Universidade de St Andrews na Escócia, dedicou boa parte de sua carreira estudando corvos, o que para ele trouxe a oportunidade de uma nova compreensão das capacidades dos animais. Ele observou que esses animais não apenas fabricam ferramentas, mas também vivem em grupos sociais complexos, e que diferentes grupos de corvos possuem vocalizações distintas – uma espécie de “sotaque”, talvez ligado às técnicas específicas de fabricação de ferramentas.
Introduzindo a revolução da inteligência artificial nesse cenário, os cientistas tem a possibilidade de ter importantes insights sobre questões como: será que os animais se comunicam entre si de uma forma que possamos algum dia compreender? Enquanto muitas culturas indígenas há muito acreditam que os animais se comunicam intencionalmente, os cientistas ocidentais sempre foram mais cautelosos em suas afirmações… Pelo menos antes da inteligência artificial, que estreitou a fronteira entre a comunicação humana e animal.
O potencial da inteligência artificial na comunicação com os animais
O real potencial da IA é a capacidade de decifrar coisas que sempre nos pareceram indecifráveis, como o canto dos corvos. Aza Raskin, um dos fundadores do projeto sem fins lucrativos Earth Species Project, e sua equipe estão coletando uma gama diversificada de dados de diferentes espécies desses pássaros com a ideia de construir modelos de machine learning (aprendizado de máquina) para analisar esses dados e entender os padrões de comunicação.
Outras iniciativas, como o Project Cetacean Translation Initiative (CETI), está explorando o complexo mundo dos cetáceos, se concentrando em decifrar a comunicação da baleia cachalote.
Shane Gero, um cientista associado à Universidade Carleton, em Ottawa, estuda os cachalotes e suas interações sociais, e observou o retorno de um jovem macho familiar ao seu grupo, o que deu a ele a chance de gravar as vocalizações desse grupo. Com quase duas décadas de dados coletados, Gero identificou padrões de som específicos chamados de codas, um conjunto de cliques que as baleias usam para se identificar. Esses padrões são aprendidos de forma semelhante a como as crianças pequenas aprendem palavras e nomes.
A possibilidade de decodificar essas vocalizações manualmente é uma tarefa gigantesca, mas a inteligência artificial pode mudar isso abrevia as coisas. Para provar isso, uma equipe de cientistas usou uma rede neural para analisar as gravações de Gero, tendo como resultado a identificação individual das baleias com a precisão de 99%. A próxima etapa é monitorar grandes extensões do oceano e “ensinar” um computador a “falar baleiês”, começando com um microfone subaquático para registrar continuamente os sons das baleias residentes em Dominica.
Com a evolução das tecnologias de coleta de dados, como hidrofones e drones, a inteligência artificial é capaz de ser treinada com uma quantidade monumental de dados, aprendendo de forma autônoma identificar e prever sequências.
Essa tecnologia tem o potencial de redefinir nossa compreensão dos animais e, consequentemente, de nós mesmos, à medida que desafiam as fronteiras do que conhecemos, nos incentivando a reconsiderar nossa posição em relação a todas as outras formas de vida.
A pergunta que fica é: o que aprenderemos sobre nós mesmos quando finalmente ouvirmos e entendermos o que os animais têm a dizer?
Desvendando a linguagem dos animais pela IA
Em 2017, equipes de pesquisa utilizaram a inteligência artificial para fazer a tradução entre línguas humanas sem precisar de um guia de tradução, transformando as relações semânticas, como o significado de palavras, em relações geométricas.
Um exemplo de como isso funciona é pensar na maneira que palavras como “mãe” e “filha” são usadas juntas em várias línguas, e então com o aprendizado de máquina autônomo, passa a ser possível traduzir idiomas antes desconhecidos a partir do alinhamento destas “formas” linguísticas, dessas estruturas da linguagem. Basicamente, é como se a inteligência artificial pudesse “ver” como as frases e expressões são formadas e a partir disso se torna capaz de identificar as semelhanças entre elas.
Essa descoberta é mais do que tecnológica, é quase filosófica, né? O pesquisador Raskin concorda. Parece haver uma estrutura oculta na linguagem que une todos nós, um tipo de essência universal da comunicação.
Em 2020 a coisa avançou significativamente, com a capacidade da inteligência artificial de processar linguagem natural. A IA começou a ver tudo, imagem, texto, vídeo, como uma “linguagem” padrão, que é a nossa linguagem verbal, ou seja, como falamos, como escrevemos. Os sistemas de IA generativa como DALL-E e Midjourney são exemplos disso. Este mapeamento de texto e imagem é uma espécie de análise “multimodal”, que provavelmente será crucial para decodificar a comunicação animal.
E isso nos leva a um ponto interessante. Os animais também são “multimodais”, utilizando vários modos de comunicação, – sons, linguagem corporal, – ao mesmo tempo. É igual os humanos quando gesticulam enquanto falam.
Se você quiser entender mais sobre esse modelo de linguagem chamado LLM, é só clicar aqui e visitar a seção do blog sobre o assunto!
Os pesquisadores registravam esses comportamentos em uma lista chamada etograma, mas agora, com a aprendizagem de máquina automática, há potencial para entender melhor esses comportamentos e até descobrir padrões anteriormente não reconhecidos. Um estudo na Nature Communications já destacou isso ao identificar nuances nas canções dos pássaro Zebra Finch que influenciam a seleção do parceiro.
Outra aplicação notável da IA para entender os pássaros é o Merlin, um aplicativo gratuito do Cornell Lab of Ornithology, usado para identificar espécies de aves a partir de gravações. Convertendo o som em um espectrograma, o sistema busca identificar a espécie comparando a representação visual do canto da ave com a biblioteca de áudio de Cornell que já conta com mais de 1.000 espécies registradas.
O mundo barulhento é um desafio para processar as vocalizações animais, mas, em 2021, o Earth Species Project construiu uma rede neural capaz de separar sons animais sobrepostos e filtrar ruídos de fundo, como buzinas.
O valor de entender a linguagem dos animais
Imagine se pudéssemos usar essa tecnologia para ajudar espécies em perigo? O corvo havaiano, conhecido localmente como ‘Alalā, que desapareceu na natureza nos anos 2000, está sendo estudado em cativeiro usando essa tecnologia, com o objetivo de compreender o vocabulário deste animal e compará-lo com gravações históricas, buscando identificar qualquer mudança na comunicação.
Para além da vida selvagem, nossos pets também podem ter muito a dizer. Con Slobodchikoff especialista em comportamento animal e autor de Chasing Doctor Dolittle: Learning the Language of Animals, após sua extensa pesquisa com cães da pradaria, está desenvolvendo um modelo de inteligência artificial para promover a comunicação com os animais, traduzindo as expressões e latidos dos cães para seus donos. Ele defende que “animais têm pensamentos, esperanças e talvez sonhos próprios” e que os tutores nem sempre compreendem a linguagem de seus bichinhos.
Ao analisar animais de criação, Elodie F. Briefer, professora associada de comportamento animal na Universidade de Copenhague, mostrou que é possível avaliar o seu estado emocional apenas ouvindo suas vocalizações. Ela criou um algoritmo capaz de ouvir os grunhidos de um porco e dizer se ele está contente ou estressado. O treinamento de máquina com milhares de sons de porcos, permitiu prever com precisão as emoções desses animais. O potencial dessa inovação para aprimorar o bem-estar animal a partir da compreensão da sua linguagem é imenso e não deve ser subestimado.
Apesar de todo o potencial, é vital reconhecer as limitações dos modelos de linguagem de inteligência artificial, que muitas vezes podem não acertar o cerne do significado da comunicação animal.
Benjamin Hoffman, que ajudou a desenvolver a aplicação Merlin antes de se juntar ao Earth Species Project destaca que enquanto modelos de IA como o Merlin Sound ID são eficazes em detectar quais aves estão presentes em uma localidade, eles ainda têm um longo caminho a percorrer na para compreender nuances comportamentais, como as intenções por trás de um chamado específico.
Daniela Rus, diretora do Laboratório de Ciência da Computação e Inteligência Artificial do MIT, quer entender como a aprendizagem automática ampliou as possibilidades no campo da comunicação animal. Com experiência anterior em pesquisa de comportamento de baleias, Rus hoje aplica sua perícia no Projeto CETI. Os avanços tecnológicos, como sensores subaquáticos avançados, em combinação com modelos de inteligência artificial mais robustos, estão permitindo abordagens inéditas para capturar e analisar comportamentos animais.
Em sua recente empreitada no Projeto CETI, seu principal desafio foi distinguir os cliques de baleias cachalote do ruído de fundo do oceano, e ela descobriu que esses cliques, que muitos uma vez acreditavam ser semelhantes ao código binário, revelaram-se muito mais complexos. Após estabelecer medições acústicas precisas, com a inteligência artificial, ela se aprofundou para entender como esses cliques formam codas, identificando padrões e sequências intrincados.
O futuro da comunicação animal
À medida que avançamos para entender a comunicação animal, surgem mais perguntas. Como podemos verdadeiramente entender uma linguagem sem primeiro conhecer sua estrutura? E de acordo com as recentes inovações da IA, talvez não precisemos. Hoje, a IA pode imitar padrões e entonações da fala humana com uma precisão inimaginável, e Raskin, acredita que em breve poderemos alcançar o mesmo nível de interação com animais.
Os pesquisadores estão trabalhando em modelos de inteligência artificial que emulam várias espécies, com o objetivo de realmente ter “conversas” com animais. E estamos falando de comunicação bidirecional que poderia, segundo Raskin, fazer os animais sentirem que estão interagindo com um dos seus e não com uma máquina.
Para testar essa inovação, em breve será conduzido uma espécie de “Teste de Turing animal”, um experimento com pássaros Zebra Finch em um ambiente de laboratório, para testar se o animal consegue discernir se está se comunicando com um ser da sua espécie ou com uma máquina. Raskin já fala na possibilidade de nos comunicarmos com os animais antes mesmo de entender sua linguagem completamente.
Os problemas éticos e de compreensão da linguagem animal
A perspectiva de uma comunicação mais profunda com os animais, viabilizada por avanços tecnológicos, é empolgante. Mas junto com o entusiasmo, emergem preocupações éticas relevantes.
Karen Bakker, pesquisadora de inovações digitais e autora de The Sounds of Life: How Digital Technology Is Bringing Us Closering to the Worlds of Animals and Plants, chama a atenção para o mau uso da inteligência artificial para práticas como pescas precisas, onde os peixes podem ser localizados através de suas vocalizações. Ou ainda caçadores ilegais poderem identificar e atrair animais em extinção. Também em casos como a perturbação de uma canção natural, como a de uma baleia jubarte, por meio de uma música sintética, poderia ter consequências sociais imprevisíveis.
Até agora, organizações como o Earth Species Project têm liderado a revolução, comprometendo-se com a partilha de dados e modelos de código aberto. Mas à medida que o campo avança, existe o risco de atores orientados pelo lucro explorarem esta tecnologia para fins menos altruístas.
O surgimento da possibilidade de compreender a linguagem animal com essa tecnologia aumenta a urgência de diretrizes práticas e quadros legislativos adequados.
Vale pensar que a questão não é apenas sobre a tecnologia em si, mas também sobre a profundidade do nosso entendimento da linguagem animal. Ao aspirar a criar um “chatbot de baleia”, precisamos ir além de replicar cliques e assobios. Precisamos imaginar e empatizar com a experiência do animal.
Surpreendentemente, humanos e animais compartilham muitas formas básicas de comunicação. Um exemplo é a semelhança do choro de bebês mamíferos que ajustam a tonalidade de seus gritos para atingir os ouvidos dos pais. Essa linguagem é tão semelhante a ponto de um cervo de cauda branca responder aos gemidos, sejam eles feitos por marmotas, humanos ou focas.
E aqui jaz um debate de longa data: os sons emitidos pelos animais são comparáveis à linguagem humana em termos do que transmitem? Enquanto alguns argumentam que a linguagem é uma faculdade exclusivamente humana, com regras específicas de gramática e sintaxe, Raskin defende a possibilidade de descobrirmos expressões comuns entre espécies. Para ele, a comunicação animal, com raízes que se estendem por milhões de anos, pode decodificar verdades universais e profundas.
Porém, para verdadeiramente “traduzir” a linguagem animal, é essencial que olhemos além de nossos próprios preconceitos e expectativas. A comovente história de um casal de pássaros Sandhill Crane e sua possível reação emocional à perda serve como um lembrete. A observação de alguns cientistas reforça a ideia de que interpretar tais reações emocionais apenas como comportamentos desprovidos de sentimento pode ser desviar da realidade.
Todos nós, em algum momento, conseguimos nos relacionar com a dor da perda. Talvez o verdadeiro valor de qualquer linguagem esteja na possibilidade de nos ajudar a nos relacionarmos com os outros, libertando-nos das limitações de nossas próprias mentes.
Christy Yuncker, George Happ são os cientista aposentados que dividiram seu lago no Alasca com o casal de Sandhill Crane, e após observar a reação dos pássaros quando um deles morreu ela observa que “Estamos sempre olhando para a natureza, quando na verdade, fazemos parte dela.“
Fonte: Nature