Será que os animais pensam como nós? Já se pegou viajando nos seus pensamentos, talvez durante uma reunião maçante ou enquanto aguardava numa longa fila, transportando-se de volta para uma viagem memorável ou simplesmente para outro lugar? Essa habilidade de viajar mentalmente no tempo é um aspecto fascinante da cognição humana, que nos permite reviver experiências sem nos movermos fisicamente um centímetro sequer.
O que é curioso é que essa habilidade de imaginar não é exclusivamente humana. Pesquisas recentes sugerem que roedores, especificamente os ratos, podem compartilhar essa habilidade cognitiva notável.
Em um estudo pioneiro liderado por Albert Lee e seus colegas do Beth Israel Deaconess Medical Center em Boston, Massachusetts, cientistas mergulharam no mundo da cognição dos ratos com a ajuda de tecnologia avançada. O hipocampo, uma pequena região dentro do cérebro, desempenha um papel central na formação de memórias e é notavelmente consistente em todos os mamíferos, incluindo humanos e ratos. Essa semelhança estabeleceu a base para os cientistas postularem que, talvez, ratos, como nós, possam imaginar e revisitar mentalmente lugares que conheceram.
Os pesquisadores se propuseram a testar essa hipótese, mas havia um desafio significativo a ser superado: a comunicação. Nós temos a nossa linguagem como meio de expressar nossas memórias e imaginações, e esse era um desafio que precisava ser superado para analisar os ratos. A equipe então usou uma interface sofisticada entre os cérebros dos ratos e uma máquina, permitindo que eles “traduzissem” a atividade neuronal dos ratos em algo observável.
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Três ratos foram treinados para acharem caminhos em troca da recompensa de água açucarada em uma arena de realidade virtual (VR) de 360 graus projetada para parecer um túnel escuro, onde os animais se movimentavam em esteiras. Enquanto esses ratos realizavam suas tarefas, sua atividade elétrica do hipocampo era meticulosamente gravada, estabelecendo a base para o que se tornaria uma interface cérebro-máquina.
Essa interface foi a chave para o enigma. Ela reverteu os sinais gravados do hipocampo dos ratos em imagens dentro do ambiente de VR, proporcionando uma visão do que os ratos estavam “pensando” com base na atividade do hipocampo.
Em um dos experimentos, ratos foram colocados na esteira, mas, ao contrário de suas sessões de treinamento, seus movimentos não mais alteravam sua visão no VR. A tarefa deles era imaginar o caminho até uma forma particular com a qual estavam familiarizados para receber sua recompensa.
Surpreendentemente, os ratos rapidamente entenderam, percebendo que o movimento físico era inútil, mas ao imaginar a rota até a forma, eles podiam acionar as células do hipocampo conectadas a essa memória. Isso, por sua vez, era traduzido pela interface cérebro-máquina em imagens de VR, efetivamente aproximando-os do alvo desejado sem qualquer movimento físico.
Em uma segunda tarefa, o nível de complexidade foi aumentado. Agora, os ratos precisavam usar sua imaginação para mover uma forma até um local específico dentro do ambiente de VR. Ao contrário da primeira tarefa, o mundo ao redor deles permanecia estático, obrigando os animais a permanecerem imóveis e a imaginar o movimento, muito parecido com o que um humano faria. Mais uma vez, os ratos estavam à altura do desafio, completando com sucesso a tarefa.
Este arranjo experimental marcou um marco significativo na ciência cognitiva, demonstrando pela primeira vez que animais podem controlar conscientemente um modelo interno do mundo armazenado em seu hipocampo, um elemento fundamental do processo de imaginação.
A implicação dessas descobertas é profunda, sugerindo que a capacidade de processos de pensamento complexos como a imaginação pode ser mais difundida no reino animal do que se supunha anteriormente.
Lee e sua equipe acreditam que essa capacidade de imaginação não é um traço humano único, mas sim uma característica comum entre todos os mamíferos, graças à arquitetura compartilhada do hipocampo. Embora a profundidade e a amplitude da imaginação dos ratos possam não espelhar a nossa, o quadro básico parece notavelmente semelhante.
Críticos podem argumentar que imaginar uma experiência não é equivalente à consciência. No entanto, o controle deliberado de neurônios do hipocampo para alcançar um estado mental específico ou resultado, conforme demonstrado pelos ratos, sugere um certo nível de consciência. Frank Sengpiel, da Cardiff University no Reino Unido, reforça essa visão, sugerindo que essas descobertas não apenas demonstram a capacidade dos ratos para a viagem mental no tempo, mas também indicam um nível de consciência nesses animais que se assemelha ao nosso próprio.
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Consciência em animais e a provocação para além da ciência
Embora o estudo ofereça uma nova perspectiva sobre as habilidades cognitivas dos animais, ele também abre uma série de novas questões. Até que ponto os ratos podem imaginar? Eles rememoram com as mesmas correntes emocionais que os humanos? Como essa habilidade afeta seu comportamento e sobrevivência? Essas são apenas algumas das questões que Lee e seus colegas pretendem explorar em seus trabalhos futuros.
Esta pesquisa transcende as fronteiras tradicionais da neurociência, tocando em elementos da filosofia e da psicologia. Ela nos obriga a repensar nosso lugar no reino animal e a singularidade de nossas capacidades cognitivas, apontando possibilidades em que as diferenças entre a inteligência humana e animal podem ser muito mais diferentes do que se pensava anteriormente.
As potenciais aplicações desta pesquisa são amplas. Compreender como os animais pensam e imaginam pode ter implicações em como os tratamos e em como projetamos ambientes que atendem ao seu bem-estar, e também pode abrir caminho para tratamentos novos para distúrbios relacionados à memória em humanos, já que o hipocampo é um ator chave em doenças como o Alzheimer.
A ideia de que ratos podem imaginar abre um novo capítulo na nossa compreensão da cognição animal, desafiando nossas noções preconcebidas de consciência e abrindo caminho para futuras explorações nas mentes dos animais. À medida que a ciência evolui no sentido de descobrir mais sobre o aspecto da consciência nos animais nos aproximamos de questões muito além da biologia e da neurociência, nos forçando, quem sabe, a repensar questões éticas e de como nos relacionamos e até então temos como “irracionais”.
Fonte: New Scientist