A emulação do cérebro humano tem despertado a ciência desde o advento dos computadores, já nos idos da década de 1940, quando já se tentava modelar redes neurais simplificadas. Esses esforços pioneiros desembocaram no que hoje conhecemos como aprendizado de máquina, ou machine learning, que tem raízes em sistemas inspirados pela biologia.
No entanto, o panorama atual nos convida a reformular a questão: e se utilizássemos o aprendizado de máquina para construir modelos computacionais que simulem a atividade cerebral? A ideia é uma realidade cada vez mais tangível graças ao grande volume de dados sobre o cérebro que tem sido coletado e analisado nas últimas décadas.
Na jornada para desvendar os mistérios do cérebro, neurocientistas têm criado conectomas desde os anos 70, que são como mapas, como fotografias da conectividade e morfologia dos neurônios, oferecendo uma representação estática do cérebro em um momento específico, e com o avanço da tecnologia, tornou-se possível fazer gravações funcionais com precisão celular, seguindo a atividade neural ao longo do tempo.
Adicionando a isso, temos a transcriptômica, uma área revolucionária que nos permite medir a atividade genética em amostras de tecido cerebral, indo além para mapear quando e onde essa atividade acontece. O desafio, contudo, tem sido integrar esses diferentes tipos de dados ou coletá-los simultaneamente do cérebro inteiro de um mesmo espécime.
Treinar programas de inteligência artificial com esses mapas detalhados e dados funcionais para reproduzir a atividade neural que se espera encontrar em sistemas biológicos é o cenário promissor que o machine learning está começando a tornar possível. Os modelos de cérebro que resultam desses treinamentos poderiam, teoricamente, espelhar a complexidade dinâmica do nosso próprio cérebro.
Apesar dos desafios técnicos e conceituais que ainda precisam ser superados, há um crescente otimismo de que uma abordagem híbrida — combinando técnicas convencionais de modelagem cerebral com sistemas de aprendizado de máquina treinados em conjuntos de dados diversificados — poderá tornar a empreitada mais rigorosa e informativa.
Compreender o funcionamento do cérebro é uma área de pesquisa que promete não apenas avanços tecnológicos, mas também insights profundos sobre a própria essência do pensamento e da consciência humana.
Mapeando o cérebro
A neurociência já avançou significativamente desde a primeira tentativa de mapeamento do cérebro do nematóide C. elegans (um verme que ajudou a entender o desenvolvimento humano), há meio século. Aquela jornada de 15 anos marcou o início de uma era de descobertas que, alimentadas pelos avanços tecnológicos, transformaram a forma como entendemos o cérebro.
Nos últimos vinte anos, a secção de tecidos e os métodos de imagens (como, por exemplo, a radiologia) abriram caminho para que os pesquisadores coletassem dados anatômicos com mais facilidade. A análise de imagens e o poder de computação avançaram em passos largos, tornando o processamento desses vastos conjuntos de dados uma realidade cada vez mais acessível.
Hoje, temos conectomas completos para organismos como o C. elegans e a mosca Drosophila melanogaster, tanto em sua fase larval quanto adulta. Mesmo no cérebro dos mamíferos, conquistamos progressos notáveis, com mapeamentos de partes minúsculas dos cérebros de camundongos e humanos. Embora esses mapas sejam revolucionários, eles ainda são como quebra-cabeças incompletos, pois não mapeiam conexões elétricas em larga escala e tendem a negligenciar as células gliais, essas heroínas anônimas que sustentam e orientam o fluxo de informações no sistema nervoso.
Enquanto os cientistas investigam a anatomia do cérebro, ainda há muito a desvendar sobre a expressão genética e as proteínas presentes nos neurônios e também em outras células. Estas são as próximas fronteiras do conhecimento que ansiamos por explorar.
No entanto, o que já descobrimos é motivo de celebração. Por exemplo, no caso da D. melanogaster, o estudo de seus conectomas tem esclarecido o funcionamento dos circuitos neurais responsáveis por comportamentos complexos, como a agressão. Nos peixes-zebra, a técnica revelou os segredos por trás da classificação de odores e do controle dos movimentos oculares, essenciais para a navegação.
E embora mapear um cérebro de camundongo por inteiro seja uma empreitada que pode levar mais de uma década, dada a sua complexidade e tamanho, os cientistas estão no caminho para decifrar esse enigma, um neurônio de cada vez.
Paralelamente, a transcriptômica de célula única e espacial tem aprimorado nossa capacidade de capturar padrões de expressão genética com uma precisão sem precedentes. E não podemos esquecer as tecnologias que nos permitem gravar a atividade neural em cérebros inteiros de vertebrados, durante horas a fio, o que significa acompanhar a atividade de quase 100.000 neurônios no cérebro de uma larva de peixe-zebra, por exemplo, com técnicas de microscopia que nos dão uma visão tridimensional da vida em seu nível mais fundamental.
Esses métodos, apesar de serem um pouco menos precisos do que os registros eletrofisiológicos, são um grande salto em relação aos métodos não invasivos, como a imagem por ressonância magnética funcional (fMRI). Há um avanço sem precedentes na maneira como visualizamos e compreendemos o cérebro e os neurônios.
Entre o conhecido e o desconhecido
Ao tentar desvendar os padrões de atividade cerebral, os cientistas têm se apoiado fortemente em uma abordagem baseada na física, através de simulações de sistemas nervosos ou de suas frações, usando descrições matemáticas do comportamento de neurônios reais ou de partes de sistemas nervosos reais. Mas essa não é uma tarefa simples, e exige palpites treinados sobre aspectos do circuito, como a conectividade da rede, que ainda não foram verificados por observações.
Em alguns casos, essas suposições são um verdadeiro mergulho no escuro, conhecido como ‘Modelos Misteriosos’. Mas, em outros, mapas anatômicos de resolução única de células e sinapses individuais têm auxiliado pesquisadores a refutar e gerar hipóteses. É um jogo de equilíbrio entre o que se sabe e o que se acredita saber.
Os chamados “Modelos Misteriosos” são um conceito fascinante no campo da neurociência computacional, surgindo da necessidade de explorar territórios inexplorados do cérebro, onde os dados ainda são escassos ou inexistentes. No caso do ambicioso projeto europeu para recriar o cérebro humano (clica aqui e veja esse projeto de mais de 600 milhões de euros), o objetivo inicial era simular computacionalmente o cérebro humano em sua totalidade. Embora essa meta tenha sido posteriormente descartada, o projeto conseguiu simular partes dos cérebros de roedores e humanos, incluindo dezenas de milhares de neurônios no modelo de um hipocampo de roedor.
No entanto, devido à falta de medidas biológicas detalhadas e mapas funcionais, avaliar a precisão dessas simulações torna-se um desafio considerável. Sem um entendimento completo da anatomia ou da funcionalidade real, os modelos são construídos com base em suposições e procedimentos sintéticos de geração de dados, o que significa que, embora os modelos possam fornecer insights valiosos, eles permanecem envoltos em mistério — daí o termo “Modelos Misteriosos”. A incerteza reside em não saber até que ponto essas simulações representam fielmente o que realmente acontece nos sistemas biológicos, tornando-os tanto uma promessa quanto um enigma na pesquisa contemporânea sobre o cérebro.
Para equilibrar o que já é conhecido e as suposições, os neurocientistas têm refinado descrições teóricas do circuito que permite a D. melanogaster calcular o movimento por quase setenta anos. Desde a conclusão de seu conectoma, em 2013, uma série de dados detalhados tem favorecido algumas hipóteses sobre o funcionamento desse circuito em detrimento de outras.
No entanto, os dados coletados de redes neurais reais também evidenciaram os limites de uma abordagem dirigida apenas pela anatomia. Um modelo de circuito neural, completado nos anos 90, apresentava uma análise detalhada da conectividade e fisiologia de cerca de 30 neurônios no gânglio estomacal do caranguejo, responsável pelo controle dos movimentos estomacais do animal. O estudo da atividade desses neurônios em várias situações revelou que mudanças sutis, como a introdução de um neuromodulador, alteram completamente o comportamento do circuito.
Isso sugere que, mesmo quando utilizamos conectomas e outros conjuntos de dados ricos para guiar e restringir hipóteses sobre circuitos neurais, os dados de hoje podem não ser detalhados o suficiente para capturar o que realmente acontece nos sistemas biológicos. Em contrapartida,o aprendizado de máquina se destaca como um caminho promissor para esta finalidade.
Orientados por dados de conectomas e outros, modelos de aprendizado de máquina poderiam ser treinados para produzir comportamento de rede neural que esteja em consonância com o comportamento de redes neurais reais — medidos por meio de gravações funcionais com resolução celular.
Esses modelos de IA poderiam combinar informações de técnicas convencionais de modelagem cerebral, como o modelo de Hodgkin–Huxley, que descreve como os potenciais de ação em neurônios são iniciados e propagados, com parâmetros que são otimizados usando mapas de conectividade, gravações de atividade funcional ou outros conjuntos de dados obtidos para cérebros inteiros.
Além disso, os modelos de aprendizado de máquina poderiam compreender arquiteturas ‘caixa-preta‘ que contêm pouco conhecimento biológico explicitamente especificado, mas bilhões ou centenas de bilhões de parâmetros, todos otimizados empiricamente.
Os pesquisadores poderiam avaliar esses modelos, por exemplo, comparando suas previsões sobre a atividade neural de um sistema com gravações do sistema biológico real. Fundamentalmente, eles então avaliariam como as previsões do modelo se comparam quando o programa de aprendizado de máquina é fornecido com dados que não foram usados no treinamento — uma prática padrão na avaliação de sistemas de aprendizagem de máquina.
Esse método poderia tornar mais rigorosa a modelagem do cérebro, que abrange milhares ou mais neurônios. Os cientistas teriam a possibilidade de ponderar, por exemplo, se modelos mais simples, que são mais fáceis de calcular, fazem um melhor trabalho de simulação de redes neurais do que modelos mais complexos que são alimentados com informações biofísicas mais detalhadas, ou vice-versa.
O aprendizado de máquina já está sendo usado dessa forma para melhorar a compreensão de outros sistemas extremamente complexos, basta lembrar de que, desde os anos 50, os sistemas de previsão do tempo geralmente dependiam de modelos matemáticos cuidadosamente construídos de fenômenos meteorológicos. No entanto, nos últimos cinco anos, pesquisadores desenvolveram vários sistemas de previsão do tempo usando aprendizado de máquina. Esses modelos contém menos suposições, como por exemplo, sobre como os gradientes de pressão impulsionam mudanças na velocidade do vento e como isso, por sua vez, move a umidade através da atmosfera. Em vez disso, milhões de parâmetros são otimizados pelo aprendizado de máquina para produzir comportamento climático simulado que é consistente com bancos de dados de padrões climáticos passados.
Essa nova abordagem tem seus desafios. Mesmo que um modelo faça previsões precisas, pode ser difícil explicar como ele faz isso e, além disso, os modelos muitas vezes são incapazes de fazer previsões sobre cenários que não foram incluídos nos dados em que foram treinados.
Um modelo meteorológico treinado para fazer previsões para os próximos dias tem dificuldade em extrapolar essa previsão para semanas ou meses no futuro. Mas, em alguns casos — para previsões de chuva nas próximas horas, por exemplo — as abordagens de aprendizado de máquina já estão superando as clássicas.
Esses modelos de IA também oferecem vantagens práticas, como o uso de códigos subjacentes mais simples e podem ser usados por cientistas com menos conhecimento especializado em meteorologia.
Já para a modelagem cerebral, essa abordagem pode ajudar a preencher algumas das lacunas nos conjuntos de dados atuais e reduzir a necessidade de medições cada vez mais detalhadas de componentes biológicos individuais, como neurônios únicos. Conforme conjuntos de dados mais abrangentes se tornam disponíveis, seria simples incorporar os dados aos modelos.
Sinergia e precisão na modelagem neural
A qualidade dos dados é a pedra angular do aprendizado de máquina. Para capturar a essência de sistemas neurais altamente interconectados, os cientistas devem aspirar a adquirir conjuntos de dados do cérebro inteiro, e por que não dizer, de todo o corpo, à medida que essa possibilidade se torna viável. Afinal, modelos baseados em fragmentos de um sistema podem levar a inferências limitadas, especialmente se peças significativas do quebra-cabeça estiverem faltando.
O objetivo é ambicioso: obter mapas anatômicos completos das conexões neurais e gravações funcionais do mesmo espécime. Atualmente, é raro que um grupo de pesquisa se dedique a capturar ambas as dimensões simultaneamente, e isso precisa mudar.
Considerando o sistema nervoso de C. elegans, composto por 302 neurônios, poderíamos assumir que um mapa de conectividade de um espécime seria representativo para todos, mas estudos sugerem que até mesmo esses organismos podem apresentar variações significativas. Quando nos voltamos para sistemas mais complexos, como os de D. melanogaster e larvas de peixe-zebra, a variabilidade entre os indivíduos se torna ainda mais pronunciada, reforçando a necessidade de modelos personalizados.
Até o momento, essa façanha é possível apenas em organismos com corpos transparentes, mas com o avanço da ciência, novas formas não invasivas de registro de atividade neural, talvez com o uso de ultrassom, podem expandir nosso alcance.
Para obter tais conjuntos de dados multimodais no mesmo espécime, será necessária uma colaboração extensiva entre pesquisadores, investimento em ciência de grandes equipes e suporte aumentado das agências de fomento para empreendimentos mais holísticos. Um exemplo a ser seguido é o projeto MICrONS, da US Intelligence Advanced Research Projects Activity, que conseguiu dados funcionais e anatômicos para um milímetro cúbico do cérebro de um rato.
Além da aquisição de dados, os neurocientistas precisarão definir metas claras de modelagem e métricas quantitativas para avaliar o progresso. Que comportamento um modelo deve prever? O de um único neurônio ou de todo o cérebro? E o que seria uma reprodução precisa da atividade neural em um sistema biológico? Benchmarks formais e acordados serão cruciais para comparar abordagens de modelagem e acompanhar o progresso ao longo do tempo.
Por fim, para abrir os desafios da modelagem cerebral a uma comunidade diversa, incluindo neurocientistas computacionais e especialistas em aprendizado de máquina, os pesquisadores precisarão articular à comunidade científica mais ampla quais tarefas de modelagem são de maior prioridade e quais métricas devem ser usadas para avaliar o desempenho de um modelo.
As fronteiras da IA para o mapeamento do cérebro
Diante do avanço das técnicas de modelagem do cérebro, uma pergunta emerge entre a comunidade científica: a abordagem de aprendizado de máquina será realmente útil para desvendar o funcionamento do cérebro? Alguns pesquisadores, com razão, ponderam se não estaríamos apenas trocando o desafio de entender o cérebro pelo desafio de compreender uma complexa rede artificial.
Entretanto, há motivos para otimismo. Uma estratégia similar já vem sendo empregada com sucesso na neurociência sensorial, onde estímulos como visões e odores são processados e codificados pelo cérebro.
Neste campo, redes neurais modeladas classicamente, que detalham alguns aspectos biológicos, estão sendo complementadas por sistemas de aprendizado de máquina, que são treinados com vastos conjuntos de dados visuais ou auditivos para reproduzir habilidades nervosas, como o reconhecimento de imagens, e o resultado é que as redes não só demonstram funcionalidades surpreendentemente semelhantes aos seus correspondentes biológicos, mas também são mais fáceis de analisar e questionar.
Por ora, talvez seja suficiente o questionamento se os dados obtidos através do mapeamento cerebral atual e de outros esforços são capazes de treinar modelos de aprendizado de máquina para reproduzir atividades neurais que correspondam ao que é observado em sistemas biológicos. Aqui, até mesmo o fracasso seria instrutivo — um sinal de que os esforços de mapeamento precisam ser ainda mais aprofundados.
Desde as primeiras tentativas de mapear sistemas neurais até a possibilidade de simular cérebros inteiros com aprendizado de máquina, testemunhamos como a ciência avança na fronteira do conhecimento humano. Mesmo diante de tantas incertezas, cada passo nos coloca mais próximos da possibilidade de replicar e explicar a atividade neural.
Fonte: Nature