Entre otimistas e pessimistas, é indiscutível que os supercondutores estão em alta. A despeito dos obstáculos recentes, o campo da supercondutividade vive o que alguns cientistas definem como a “era de ouro” desse campo fascinante da física.
Recentemente, um episódio na revista Nature sacudiu a comunidade científica: a retração de um artigo que afirmava ter alcançado a supercondutividade à temperatura ambiente. Esse recuo, embora represente um revés, não abalou o otimismo dos pesquisadores, que continuam a explorar as fronteiras do conhecimento com entusiasmo renovado.
A busca pela supercondutividade, que permite a condução de eletricidade sem resistência e, portanto, sem perda de energia, sempre capturou a imaginação dos cientistas. O episódio da retração, seguido pelo desmantelamento de outra afirmação audaciosa sobre o supercondutor LK-99, destacou os desafios e a complexidade inerentes a esta área de pesquisa, mas longe de desanimar os especialistas, esses acontecimentos parecem ter injetado ainda mais vigor em seus esforços.
A fala otimista de Lilia Boeri, física especializada em previsões computacionais na Universidade Sapienza de Roma, enfatiza que a supercondutividade não está em declínio, mas sim no auge de uma renascença, impulsionada em grande parte pelos avanços nas simulações computacionais. Estas ferramentas são cruciais para prever a existência e as propriedades de materiais ainda não descobertos, abrindo novos caminhos para a investigação.
Um dos focos mais promissores da pesquisa atual são os super-hidretos, materiais ricos em hidrogênio que têm mostrado propriedades supercondutoras em temperaturas cada vez mais altas, embora sob alta pressão. Apesar da decepção com o material mencionado no artigo retratado do qual a Nature se retratou, envolvendo hidrogênio, lutécio e nitrogênio, os últimos anos testemunharam a descoberta de várias novas famílias de materiais com propriedades potencialmente revolucionárias.
Paul Canfield, físico da Iowa State University em Ames e do Ames National Laboratory, acredita que estamos à beira de descobrir muitos novos supercondutores, apesar dos contratempos recentes, e a pesquisa em supercondutividade está mais viva do que nunca, entrando em uma era de exploração e descoberta sem precedentes.
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Descobertas e desafios da supercondutividade
Quando os elétrons em um material sólido formam pares, conhecidos como “pares de Cooper”, surge a supercondutividade. Este processo permite que uma grande quantidade de elétrons se desloque harmoniosamente dentro do material, conduzindo corrente elétrica sem produzir calor desnecessário.
Em supercondutores do tipo convencional, os elétrons se agrupam em pares de Cooper devido às vibrações presentes no material, semelhante a surfistas pegando ondas. Tradicionalmente, acreditava-se que tal fenômeno só acontecia em temperaturas extremamente frias, até aproximadamente 40 Kelvin. Supercondutores compostos por um único elemento geralmente necessitam de temperaturas abaixo de 10 Kelvin para manifestar essa característica. Mas com a descoberta do diboreto de magnésio em 2001, por uma equipe liderada por Jun Akimitsu na Universidade de Okayama, Japão, surgiu um novo limite, de temperatura para a supercondutividade, atingindo 39 Kelvin.
A teoria pioneira do físico teórico Neil Ashcroft, formulada em 2004, semeou as bases para um avanço sem precedentes, quando previu que a combinação de hidrogênio com certos elementos sob alta pressão poderia produzir materiais supercondutores operando em temperaturas muito mais elevadas do que as conhecidas até então. Esta previsão abriu um novo campo de possibilidades, desafiando a noção tradicional de que a supercondutividade só poderia existir em temperaturas extremamente baixas.
O cerne dessa teoria reside na ideia de que, ao aumentar a frequência das vibrações mecânicas dentro do material – um processo facilitado pela proximidade dos átomos de hidrogênio -, seria possível manter a supercondutividade mesmo em temperaturas mais altas. Entretanto, a realização prática desta teoria enfrentou um obstáculo colossal: a necessidade de criar esses materiais sob pressões enormes, comparáveis às encontradas no núcleo da Terra.
Já em 2015, um avanço significativo foi alcançado graças às técnicas aprimoradas de experimentação em altas pressões, especialmente com o uso de uma bigorna de diamante. O físico Mikhail Eremets e sua equipe do Instituto Max Planck de Química, em Maiz, na Alemanha, demonstraram pela primeira vez a supercondutividade em um super-hidreto, especificamente o sulfeto de hidrogênio, não apenas validando as previsões de Ashcroft mas também abrindo portas para a descoberta de uma nova família de materiais supercondutores.
Desde então, a busca por novos materiais supercondutores na família dos super-hidretos tem sido fervorosa. Entre essas descobertas, destacam-se as estruturas tipo gaiola de cálcio, conhecidas como clatratos, que mostram propriedades supercondutoras promissoras.
Atualmente, o título de “supercondutor mais quente” pertence ao hidreto de lantânio, um membro da classe dos super-hidretos, que demonstrou ser um supercondutor convencional de alta pressão, funcionando em temperaturas de até pelo menos 250 kelvin, apontando um futuro onde a supercondutividade pode se tornar mais acessível e aplicável em um espectro mais amplo de condições.
Simulações avançadas
A harmonia entre teoria, simulação e experimentação está no coração dos avanços mais recentes. As simulações, em particular, emergiram como uma ferramenta fundamental, abrindo caminhos inéditos para descobertas no início dos anos 2000, nos permitindo prever as propriedades supercondutoras de materiais específicos e também identificar quais combinações de elementos poderiam levar à formação de novos supercondutores.
Um marco nessa jornada foi a consistência entre as simulações de 2014 e a descoberta subsequente em 2015 de que o sulfeto de hidrogênio é um supercondutor. Essa correlação entre teoria e prática reforçou a importância vital das simulações avançadas. De acordo com Artem Oganov, cientista de materiais do Instituto Skolkovo de Ciência e Tecnologia em Moscow, sem os algoritmos de previsão de estrutura, talvez demorasse mais um século para descobrir os supercondutores ricos em hidrogênio.
Essas simulações são particularmente importantes para entender o comportamento dos materiais sob altas pressões, em que os átomos interagem de maneiras que desafiam os princípios básicos da química, como exemplificado pelo hexahidreto de lítio, um composto que só existe sob grande pressão. Este é um lembrete de que, no mundo subatômico, as regras comuns podem não se aplicar.
A busca pela supercondutividade levou os cientistas a uma excursão virtual por quase toda a tabela periódica, concentrando-se especialmente nos metais do lado esquerdo, como cálcio, lítio e lantânio. A simulação de combinações de múltiplos elementos com hidrogênio, uma tarefa computacionalmente mais complexa, também está em andamento, e o metal pesado actínio surge como um candidato promissor, embora seu teste prático seja desafiador devido à sua raridade e radioatividade.
Além disso, as simulações com compostos de boro sugerem que a ‘pressão química’ interna pode reduzir a necessidade de pressão externa para alcançar a supercondutividade, o que abre uma possibilidade de supercondutores operarem a temperaturas mais altas sem a necessidade de pressões extremas.
Uma descoberta ainda mais intrigante vem das estruturas com ligações covalentes, que podem vibrar em altas frequências sem estar sob pressão. Esses materiais poderiam ser supercondutores em temperaturas mais amenas, como 110 kelvin, evitando a necessidade de sistemas de refrigeração caros baseados em hélio líquido e utilizando sistemas mais simples com nitrogênio líquido.
Embora a supercondutividade à temperatura ambiente e pressão atmosférica ainda seja um objetivo distante, os avanços em direção a supercondutores que funcionam em temperaturas de nitrogênio líquido são considerados um grande avanço.
Supercondutores e o futuro
Também existem os supercondutores não convencionais, materiais que desafiam as compreensões tradicionais, que têm reacendido o entusiasmo e a curiosidade dos cientistas.
Os cupratos, baseados em cobre e oxigênio, são um exemplo clássico, descobertos na década de 1980. Até a ascensão dos super-hidretos, eles detinham o recorde de supercondutividade em altas temperaturas, e apesar de sua natureza cara e complexa, encontraram aplicações em tecnologias avançadas e podem ser peças-chave em reatores de fusão nuclear e aceleradores de partículas no futuro.
A complexidade dos cupratos ainda confunde os físicos teóricos, representando um dos problemas mais desafiadores da área, pois a natureza exata do mecanismo que permite a formação de pares de Cooper nesses materiais permanece um mistério, uma questão fundamental ainda sem resposta.
Nessa busca por compreensão, uma descoberta animadora surgiu em 2019: os nickelatos. Estes novos supercondutores, uma classe de compostos que contêm níquel em sua composição química em vez de cobre, mostraram comportamentos similares aos dos cupratos. O estudo desses materiais, conforme apontado por Kyuho Lee e sua equipe da Universidade de Stanford, poderia lançar luz sobre os segredos dos cupratos, abrindo novos caminhos para entender esses enigmáticos supercondutores.
No entanto, o desafio supremo continua: encontrar um supercondutor que funcione em condições ambientes, tanto de pressão quanto de temperatura. Essa missão divide a comunidade científica entre otimistas e céticos.
O diretor do Centro de Pesquisa Avançada em Ciência e Tecnologia de Alta Pressão em Xangai, China, Ho-Kwang Mao, considera essa busca quase impossível, enquanto Artem Oganov, por exemplo, acredita firmemente na possibilidade de alcançar a supercondutividade à temperatura ambiente, apoiado pelos avanços encorajadores nos super-hidretos.
Linha do tempo dos supercondutores
A Nature fez uma linha do tempo para demonstrar como os acontecimentos estão avançando. Segue o fio!
- Em 1911, a supercondutividade foi observada pela primeira vez pelo físico Heike Kamerlingh Onnes, que notou a resistência elétrica do mercúrio sólido cair para zero abaixo de uma ‘temperatura de transição’ de 3 kelvin. Após essa descoberta, outros metais puros foram encontrados, todos com temperaturas de transição inferiores a 10 kelvin.
- 1957 foi o ano em que a supercondutividade foi explicada. Físicos teóricos John Bardeen, Leon Cooper e John Robert Schrieffer elucidaram o fenômeno através do mecanismo que agora leva as iniciais de seus sobrenomes, BCS.
- A descoberta do cuprato ocorreu em 1986 por dois físicos da IBM, Georg Bednorz e Alexander Müller, que identificaram supercondutividade a 35 kelvin em um material baseado em cobre, marcando o primeiro supercondutor ‘não convencional’ que a teoria BCS não conseguia explicar. Nos anos seguintes, foram descobertos diversos cupratos, alguns com capacidade de supercondução até 133 kelvin.
- Jun Akimitsu fez uma descoberta significativa em 2001, encontrando supercondutividade no diboreto de magnésio com uma temperatura de transição recorde de 39 kelvin, a mais alta já observada para um supercondutor convencional sob pressão ambiente.
- No ano de 2004, Neil Ashcroft previu que materiais ricos em hidrogênio, quando submetidos a altas pressões, deveriam apresentar supercondutividade convencional a temperaturas muito elevadas.
- Em 2006, uma equipe liderada pelo cientista de materiais Hideo Hosono fez uma descoberta inesperada de supercondutividade em um composto de ferro, lantânio e fósforo. Estes supercondutores à base de ferro operam por meio de um mecanismo único, embora ainda não plenamente compreendido.
- Mikhail Eremets e sua equipe, em 2015, evidenciaram a supercondutividade a 250 kelvin no sulfeto de hidrogênio. Este e outros supercondutores super-hidreto necessitam de pressões de pelo menos um milhão de atmosferas para sua ocorrência.
- Em 2019, Harold Hwang e colaboradores descobriram uma nova classe de supercondutores não convencionais baseados em níquel, ampliando ainda mais o campo de estudo da supercondutividade.
Fonte: Nature