Mitos tidos como história, fantasias que se tornam verdade na cultura popular… São armadilhas às quais todos estamos sujeitos. Uma exposição do Bruce Museum, em Greenwich, Connecticut, com curadoria do paleontólogo Daniel T. Ksepka, cuja pesquisa se concentra na evolução de aves e répteis, pode desvendar algumas farsas que são famosas no mundo todo.
A exposição que recebe o nome de “Monsters and Mermaids: Unraveling Natural History’s Greatest Hoaxes” (“Monstros e Sereias: Desvendando os Maiores Engodos da História Natural”, em tradução livre) que permanecerá aberta até 11 de fevereiro de 2024, é uma verdadeira cápsula do tempo, revelando falsificações que despertam a curiosidade de muita gente.
Entre os artefatos expostos, destacam-se curiosidades como um gigante de três metros supostamente petrificado pelo dilúvio bíblico, e surpreendentes “fósseis” encontrados em escavações montanhosas, que incluíam inscrições em hebraico. Hoje, olhamos para tais façanhas com uma pitada de ceticismo, mas é crucial lembrar que, no passado, essas falsificações tiveram um impacto significativo na sociedade.
A exposição não se limita apenas aos enganos mais famosos da história, e se concentra também nas falsificações mais modestas, mas não menos intrigantes, que o curador encontrou ao longo de sua carreira, como por exemplo um pássaro fossilizado com penas pintadas à mão e um réptil aquático sem cabeça, ao qual foi acoplado o crânio de outro espécime.
Por trás de cada grande farsa, há um falsificador com suas motivações, que variam desde a busca por fama e reconhecimento acadêmico até o desejo por lucro, vingança ou simples diversão. Desvendar estes motivos é fascinante, mas o outro lado da moeda, a disposição do público em acreditar, é igualmente intrigante, já que a propagação das falsas afirmações só é bem-sucedida se conseguir escapar do escrutínio do ceticismo. Os mais habilidosos entre os falsificadores souberam alimentar exatamente o que seu público alvo mais desejava, seja a confirmação de crenças religiosas ou científicas, seja um trampolim para a fama e a fortuna.
Em uma época onde a tecnologia amplifica exponencialmente a disseminação de informações – e desinformações – é vital refletir sobre essas histórias. As ferramentas modernas de verificação, como datação por carbono e testes de DNA, eram inimagináveis quando muitos dessas histórias falsas clássicas foram perpetradas e pois isso há uma grande importância do pensamento crítico em relação a esse aspecto de impossibilidade da verificação de algumas dessas histórias. Hoje, o problema que temos é outro: temos um poderoso arsenal para desmascarar falsificações, mas enfrentamos novos desafios com a velocidade e alcance da desinformação digital.
Bora pra lista?
1. Pedras mentirosas de Beringer: A busca pela fama
Em 1725, o cenário acadêmico da Universidade de Würzburg estava prestes a presenciar um dos mais notórios engodos da história da ciência natural. Johann Bartholomeus Adam Beringer, um professor da instituição que colecionava e estudava fósseis do Monte Eibelstadt, na atual Baviera, caminhava em direção ao que acreditava ser o ápice de sua carreira científica, guiado por uma coleção de pedras extraordinárias. Não se tratavam de meros fósseis, eram peças que desafiavam a compreensão da época, adornadas com imagens de criaturas e símbolos misteriosos.
A história começa com jovens auxiliares, contratados por Beringer para expandir sua busca por fósseis no Monte Eibelstadt, que apresentaram-lhe as primeiras peças deste quebra-cabeça intrigante. A descoberta prometia revolucionar o entendimento da história natural. Cada pedra, parecia conter o segredo de um mundo há muito perdido, onde via-se desde criaturas semelhantes a vermes até figuras solares.
À medida que a coleção crescia, a credibilidade das pedras tornava-se cada vez mais questionável. Haviam detalhes inacreditavelmente precisos nas rochas – aranhas em suas teias, aves chocando ovos, até mesmo sapos em pleno ato do acasalamento. Começaram então a aparecer pedras com estrelas, a lua e até letras do alfabeto hebraico, e apesar dos murmúrios céticos que se espalhavam, Beringer, cego pela ambição e pelo desejo de ascensão acadêmica, manteve-se inabalável.
Em sua obra “Lithographiae Wirceburgensis“, Beringer não poupou palavras para exaltar suas descobertas, com uma eloquência que beirava o exagero, descrevendo as pedras como um presente inestimável para a região da Francônia, comparando-as até mesmo aos renomados vinhos da região. Contudo, o que jazia sob este entusiasmo era mais uma teimosia perigosa, em que mesmo diante de acusações diretas de falsificação, a defesa de Beringer era ferrenha sobre a autenticidade de suas pedras, atacando diretamente seus detratores e negando qualquer possibilidade de falsidade.
O desfecho dessa saga foi quando uma audiência formal revelou a verdade por trás da elaborada falsificação. J. Ignatz Roderick, professor de geologia, e Johann Georg von Eckhart, bibliotecário, foram desmascarados como os arquitetos desta farsa. Eles haviam pago um dos jovens assistentes de Beringer para espalhar as pedras forjadas pelo Monte Eibelstadt. A revelação chegou tarde demais para salvar Beringer da humilhação: seu tratado já havia sido publicado, selando seu destino como um exemplo clássico de vítima de sua própria arrogância.
2. O gigante de Cardiff: A construção de um astro
No ano de 1869, um homem com um passado de trapaças e ilusões, George Hull, deu vida a um dos maiores enganos da história da América. Inspirado por um versículo bíblico, o Gênesis 6:4, e um debate acalorado com um pregador, Hull embarcou em um plano audacioso que se tornaria conhecido como o “Gigante de Cardiff”, uma farsa monumental que capturaria a imaginação de uma nação.
George Hull, era um arquiteto ardiloso, cuja carreira foi marcada por atividades de um caráter bastante duvidoso. Desde suas primeiras incursões no comércio de cavalos e nos jogos de cartas, onde empregava táticas questionáveis, até o mundo do comércio de tabaco, onde chegou ao extremo de incendiar seus próprios estabelecimentos para reivindicar o dinheiro do seguro.
Hull demonstrou uma disposição contínua para enganar com este padrão de comportamento que culminou no elaborado embuste do Gigante de Cardiff, uma façanha que não só revelou sua habilidade em manipular as percepções públicas, mas também sua extraordinária ousadia e criatividade no campo de criar histórias falsas com sua sagacidade e desprezo pelas normas morais, personificando a figura do trapaceiro habilidoso, capaz de entender e explorar a natureza humana em benefício próprio.
Para forjar o gigante, Hull adquiriu uma imensa placa de gesso em Fort Dodge, Iowa e com habilidade e secreta intenção, ele instruiu os escultores Henry Salle e Fred Mohrmann a esculpir a figura humana de três metros de altura.
Este gigante foi levado por Hull para uma viagem de trem de mais de 1600 quilômetros até a fazenda de seu primo, “Stub” Newell, na pequena localidade de Cardiff, em Nova York. Sob o véu da noite, Hull e seus cúmplices enterraram a estátua, dando início a um dos maiores engodos da história natural.
Quase um ano depois, trabalhadores contratados para cavar um poço na fazenda de Newell descobriram, inadvertidamente, o colossal gigante. A notícia se espalhou como fogo em um campo seco, atraindo curiosos e céticos de todas as partes. Newell, percebendo a oportunidade de lucro, ergueu uma tenda e começou a cobrar 50 centavos por uma vislumbre da maravilha petrificada, e o Gigante de Cardiff rapidamente se tornou uma sensação, atraindo um consórcio de empreendedores que o levaram para cidades maiores, como Syracuse, NY, Albany, NY e Nova York em busca de maiores lucros.
Neste cenário, entra em cena o lendário showman P.T. Barnum, que ficou fascinado pelo fenômeno, ofereceu uma soma astronômica pelo gigante, mas foi rejeitado. Inabalável, e sempre em busca de histórias espetaculares, Barnum adquiriu uma réplica do gigante de um escultor chamado Carl Franz Otto e a desfilou pelas ruas de Manhattan, com 12 cavalos puxando-a e 100 homens marchando ao lado, atraindo milhares de espectadores. Enquanto isso, o gigante “original” de Cardiff, exibido a apenas dois quarteirões de distância, começou a perder seu brilho diante da réplica mais popular de Barnum.
Com o passar do tempo, a fascinação pelo Gigante de Cardiff foi diminuindo, surgiram outros gigantes falsos e havia mais ceticismo público. O colosso, outrora centro de atenção e admiração, foi relegado a aparições esporádicas em feiras estaduais e passou por diversas mãos, chegando até a quebrar-se ao meio.
Anos mais tarde, em 1947, o Gigante de Cardiff encontrou um lar permanente no Museu dos Agricultores, em Cooperstown, Nova York, não muito longe do local de sua “descoberta” original. E agora, após mais de sete décadas, o gigante faz sua primeira jornada fora de Cooperstown, rumo ao Bruce Museum, para a exposição “Monstros e Sereias”.
O transporte da colossal estátua de 2.900 libras foi uma operação cuidadosamente orquestrada, e agora se encontra em repouso no centro da galeria do Bruce, servindo como um monumento grandioso à história dos enganos e ilusões.
3. Pedra rúnica de Kensington: A história de um massacre?
No final do século XIX, um período marcado por práticas arqueológicas questionáveis e uma fascinação por tesouros escondidos, surgiu um dos mais intrigantes mistérios: a Pedra Rúnica de Kensington. Em 1898, o imigrante sueco Olof Öhman teria feito uma descoberta em sua fazenda que desafiaria as narrativas históricas estabelecidas: uma enorme laje de pedra, inscrita com runas antigas, proclamando uma história de exploração escandinava e tragédia em terras americanas muito antes da chegada de Colombo.
A inscrição na pedra continha a narrativa de uma história dramática: um grupo de 30 exploradores, compostos por 8 godos e 22 noruegueses, relatava uma jornada fatídica desde Vinland. Uma expedição que acabou em massacre, com 10 membros encontrados mortos, enquanto outros 10 permaneciam junto aos navios. Esta mensagem, supostamente datada de 1362, encerrava com um apelo à Virgem Maria para salvar os sobreviventes do mal que os assolava.
Mas, sob um olhar mais atento e cético, a história começava a desmoronar. As runas, uma mistura de formas antigas e modernas, não correspondiam ao período alegado, e além disso, a superfície imaculada da pedra desafiava a lógica do tempo, sem marcas da erosão esperada após mais de meio milênio sob o solo de Minnesota, que congelava e descongelava.
Fora isso, a ideia de que exploradores aterrorizados, após um massacre, pudessem se dar ao trabalho de gravar uma mensagem tão detalhada em uma pedra de 200 libras era, no mínimo, improvável. Afinal, parece haver preocupações maiores ao ver companheiros mortos, certo?
O papel de Öhman na criação dessa história foi amplamente debatido, e embora ele não tenha lucrado financeiramente com a “descoberta”, muitos acreditam que ele mesmo tenha sido o autor da farsa, colocando a pedra em sua fazenda, talvez motivado por um desejo de estabelecer um vínculo étnico entre os escandinavos e a América do Norte, uma ligação que seria especialmente significativa num momento em que os imigrantes suecos enfrentavam resistência e ressentimento nas comunidades estabelecidas do Meio-Oeste americano. Provar que os escandinavos foram os primeiros exploradores ocidentais da região de Minnesota seria uma reviravolta na história.
4. A ambição de Charles Dawson: O sapo no buraco, antes do Homem de Piltdown
No início do século XX, a arqueologia se viu abalada por uma das mais impactantes fraudes científicas de todos os tempos: o Homem de Piltdown. Por trás desse engodo estava Charles Dawson, um advogado inglês e antiquário amador que tinha grandes aspirações por um lugar na prestigiada Royal Society, o que o levou a forjar uma das maiores falácias da história da antropologia.
O Homem de Piltdown foi a sua obra-prima, mas antes deste notório episódio, Dawson já havia se envolvido em outras fraudes menos conhecidas, como o caso do “Sapo no Buraco“.
Em 1901, Dawson surpreendeu o mundo científico com a revelação de um sapo “mumificado”, alegando tê-lo descoberto dentro de um nódulo de sílex durante escavações. Sílex é um tipo de rocha sedimentar, conhecido principalmente por sua dureza e por ter sido amplamente utilizado na pré-história para a confecção de ferramentas e armas.
A teoria de Dawson era de que o sapo teria entrado no nódulo ainda jovem e, após crescer, ficou preso, sobrevivendo ao capturar insetos que se aproximavam da abertura. Publicado no The Illustrated London News, o relato consolidou a fama de Dawson como o “Mago de Sussex”, um título que reconhecia suas descobertas sensacionais.
A habilidade de Dawson em criar narrativas convincentes era parte fundamental de suas fraudes. No caso do Sapo no Buraco, ele habilmente se posicionou como alguém que poderia ter sido enganado pelos supostos trabalhadores que encontraram o sapo, ao invés de ser o autor da fraude, – trabalhadores que podem nem ter existido. Esta estratégia de defesa revela o quão astuto Dawson era em suas manipulações.
A exposição “Monstros e Sereias” no Bruce Museum trouxe o Sapo no Buraco para o público, destacando as complexas camadas deste engodo. A inclusão do sapo, cuja identificação exigiu uma minuciosa análise para cumprir os regulamentos de importação, demonstra o esforço meticuloso de Dawson na construção de suas histórias: O nódulo contém um anfíbio autêntico, por isso foi preciso identificar a espécie para liberação para exposição junto ao Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos EUA. O sapo, embora dentro de uma história falsa, era verdadeiro.
Ao lado do Sapo no Buraco, uma réplica do Homem de Piltdown oferece uma janela para o desenvolvimento das habilidades de falsificação de Dawson ao longo dos anos.
O Homem de Piltdown é uma combinação astuciosa de um crânio humano e uma mandíbula de orangotango, que foi apresentado ao mundo como os restos fossilizados de um ancestral humano. Dawson tomou precauções elaboradas para encobrir suas trilhas, como modificar a mandíbula e colorir os ossos para dar a aparência de antiguidade, além de espalhar ferramentas e ossos de animais extintos ao redor do local da descoberta para estabelecer uma idade antiga.
A persistência do Homem de Piltdown no imaginário científico deveu-se, em grande parte, ao fato de se adequar perfeitamente ao que os antropólogos britânicos desejavam: um “elo perdido” na evolução humana, convenientemente localizado na Inglaterra. Arthur Smith Woodward, curador do Museu Britânico e colaborador de Dawson na apresentação do fóssil à comunidade científica, beneficiou-se enormemente da farsa, recebendo um título de cavaleiro, em parte por seu trabalho no Homem de Piltdown.
Dawson, por outro lado, não teve tanta sorte, e apesar de seus esforços e engenhosidade na construção de sua história, ele morreu em 1916 sem jamais alcançar um assento na Royal Society.
5. O Pé-Grande: A história de um fanfarrão
Numa exposição dedicada aos grandes engodos da história, Bigfoot, ou Pé-Grande, não poderia faltar. Este ícone do folclore americano começou a moldar seu legado no final do verão de 1958, ao longo de uma estrada de acesso a uma área de extração de madeira no norte da Califórnia, onde as enormes pegadas, que mais tarde seriam atribuídas a essa criatura lendária, foram encontradas pela primeira vez.
Jerry Crew, um operador de bulldozer (conhecido como trator de esteiras), fez um molde de gesso de uma dessas pegadas e o mostrou aos repórteres. Um deles, Andrew Genzoli, no Humboldt Times, apresentou a história ao mundo em um artigo que propagou o nome do mistério que se tornaria sinônimo de mistério: Bigfoot (Pé-grande).
Por trás dessas pegadas misteriosas estava Ray Wallace, um brincalhão nato e amante do ar livre. Com seus pés de madeira esculpidos, Wallace criou as trilhas originais de Bigfoot, mais como uma diversão pessoal e uma tentativa de proteger seu equipamento de registro do que qualquer outra coisa. Seu simples ato de pregar uma peça acabou por criar uma lenda da cultura americana, dando vida a uma lenda que perdura até hoje.
A herança de Ray Wallace foi preservada por seu filho, Michael, que herdou os famosos pés de madeira de alder com tiras de couro e bandas de borracha usadas para fixá-los nas pernas. Para Michael, estes pés não são apenas um artefato histórico, eles são uma lembrança tangível do espírito brincalhão e da paixão de seu pai pela natureza.
Ray Wallace se destaca entre os grandes enganadores da história não por buscar fama ou dinheiro, mas simplesmente por se divertir em pregar peças. Ele era só um fanfarrão querendo se divertir! Essa característica de sua personalidade, fez com que ele oferecesse ao público exatamente o que eles queriam: a emoção de imaginar uma criatura poderosa, uma espécie relacionada aos humanos, mas vivendo uma existência selvagem reminiscente de nossos ancestrais. Esse apelo ao misterioso e desconhecido tem um charme indiscutível ao redor da fogueira.
Desde que Wallace pressionou aqueles pés de madeira no solo pela primeira vez, mais de 65 anos atrás, milhares relataram avistamentos do Pé-Grande. Até hoje, a lenda continua a fascinar, com vídeos recentes em redes sociais alegando mostrar a misteriosa criatura perambulando por montanhas no Colorado.
Histórias fantásticas
Essas histórias todas, embora falsas, nos trazem pontos importantes para pensarmos sobre nós mesmos: Nos dizem um pouco da nossa pré-disposição em acreditar em fantasias e também sobre o perfil humano quanto à necessidade de buscar o seu lugar ao sol na história.
Mesmo decifrados, esses mistérios continuam levando uma história verdadeira… Pelo menos sobre seus autores, não é mesmo?
Fonte: Scientific American