A consciência é assunto que dá pano pra manga. E ao que parece, não diz respeito só a seres humanos. Em um anúncio empolgante que pode reformular nossa compreensão sobre a mente dos animais, um grupo de renomados biólogos e filósofos declarou recentemente que há uma “possibilidade realista” de que insetos, polvos, crustáceos, peixes e outros animais frequentemente subestimados possam experimentar formas de consciência.
Esta nova perspectiva foi reforçada por observações intrigantes feitas por pesquisadores no Bee Sensory and Behavioral Ecology Lab da Queen Mary University of London. Em 2022, eles observaram abelhas zumbindo de maneira que só pode ser descrita como “brincalhona”: as pequenas criaturas peludas interagiam com bolinhas de madeira, empurrando-as e girando-as sem nenhum propósito aparente relacionado à sobrevivência ou reprodução.
Este estudo sobre “abelhas brincalhonas” é apenas um exemplo de uma série de pesquisas que estão desafiando a noção tradicional de que apenas animais com sistemas nervosos complexos e semelhantes aos humanos, como os grandes primatas, podem ter experiências conscientes. A expansão desse entendimento para incluir uma variedade muito mais ampla de animais, até mesmo invertebrados com sistemas nervosos significativamente mais simples, está abrindo novas provocações para a investigação científica.
O reconhecimento dessa potencial consciência em um espectro tão amplo de vida animal foi formalizado na Declaração de Nova York sobre a Consciência Animal, apresentada em uma conferência chamada “The Emerging Science of Animal Consciousness“ (A Emergente Ciência da Consciência Animal), realizada na Universidade de Nova York, liderada pela filósofa e cientista cognitiva Kristin Andrews, da Universidade de York, em Ontário, pelo filósofo e cientista ambiental Jeff Sebo , da Universidade de Nova York, e pelo filósofo Jonathan Birch , da Escola de Economia e Ciência Política de Londres, e endossada por 39 especialistas, incluindo os filósofos David Chalmers e Peter Godfrey-Smith, os psicólogos Nicola Clayton e Irene Pepperberg, e os neurocientistas Anil Seth e Christof Koch, e o zoólogo Lars Chittka.
A declaração foca no que é chamado de “consciência fenomenal“, um tipo de consciência que se refere à experiência subjetiva básica de “como é” ser um organismo. Este conceito, que inclui sentir dor, prazer ou fome, mas não necessariamente estados mentais mais complexos como a autoconsciência, foi influenciado pelo ensaio filosófico de 1974 de Thomas Nagel, “What is it like to be a bat?”, embora suas raízes filosóficas sejam bem anteriores.
A consciência fenomenal é a experiência subjetiva, única e individual, da realidade que sempre tem como objeto algo diferente da própria consciência, portanto, não se tratando da consciência reflexiva, aquela que pensa sobre si mesma.
Os principais proponentes da declaração, como o filósofo e cientista cognitivo Kristin Andrews, o filósofo e cientista ambiental Jeff Sebo, e o filósofo Jonathan Birch, destacam que este avanço não apenas expande nosso entendimento científico, mas também tem implicações profundas para as políticas de bem-estar animal, suscitando questões éticas importantes. A pesquisa moderna, ao sugerir que seres tão diversos quanto abelhas ou polvos podem partilhar um traço fundamental conosco — a capacidade de sentir —, convida-nos a reconsiderar como tratamos esses animais.
Este novo paradigma na ciência da consciência animal promete ampliar nosso conhecimento sobre o que constitui a mente, e fomentar uma maior empatia e respeito pela vasta gama de vida com a qual compartilhamos nosso planeta.
Maior abrangência do reconhecimento da consciência
As recentes conversas entre Jeff Sebo, Kristin Andrews e Jonathan Birch revivem o interesse pelo estudo da consciência animal através de declarações que prometem redefinir nossas teorias sobre a mente dos animais. O avanço significativo na ciência neste sentido ao longo da última década trouxe à luz evidências provocativas de que apenas seres “complexos” como mamíferos e aves poderiam possuir consciência.
Estudos reveladores têm demonstrado que os polvos sentem dor e os chocos (outra espécie de moluscos marinhos) recordam detalhes de eventos específicos passados, evidenciando capacidades cognitivas que sugerem uma experiência consciente. Nos peixes, observa-se que o bodião-limpador pode passar por testes de autorreconhecimento no espelho, enquanto os peixes-zebra exibem sinais de curiosidade. No mundo dos insetos, as abelhas apresentam comportamentos lúdicos, e as moscas Drosophila exibem padrões de sono influenciados pelo ambiente social. Até mesmo os lagostins demonstram estados semelhantes à ansiedade, alterados por medicamentos ansiolíticos.
Essas descobertas destacam um espectro muito mais amplo de potencial consciência entre os animais, ampliando o escopo de estudo para incluir tanto vertebrados quanto invertebrados, provocando biólogos, cientistas cognitivos e filósofos da mente.
A necessidade de comunicar essas descobertas levou à formulação da Nova Declaração de Nova York Sobre a Consciência Animal, que não pretende ser abrangente, mas aponta para o estado atual do campo e para onde ele está se dirigindo. Em contraste com iniciativas anteriores, como a Declaração de Cambridge sobre a Consciência de 2012, a nova declaração é formulada com uma linguagem mais cautelosa, enfatizando a seriedade com que devemos considerar as evidências e teorias disponíveis sobre a consciência animal e suas implicações éticas.
Pensadores influentes, como o filósofo da ciência e professor da Faculdade de História e Filosofia da Ciência da Universidade de Sydney, Peter Godfrey-Smith, têm explorado extensivamente os comportamentos complexos de criaturas como os polvos, que incluem a resolução de problemas, o uso de ferramentas e comportamentos lúdicos que sugerem um envolvimento atento e curioso que dificilmente poderia ser descartado como simples automatismos sem consciência. Além disso, estudos recentes sobre a dor e estados semelhantes aos sonhos em polvos e chocos reforçam a ideia de que a experiência é uma parte real de suas vidas.
Essa expansão no entendimento da consciência sugere que o mesmo tipo de trabalho cognitivo que associamos ao córtex cerebral em humanos pode estar ocorrendo em estruturas cerebrais muito diferentes, encontradas em aves, répteis e anfíbios. Talvez, como sugerido por Andrews, não precisemos de tanto “equipamento” neural quanto pensávamos para alcançar a consciência. Essa é uma ideia revolucionária que sugere que a consciência pode ser alcançada através de arquiteturas neurais que parecem completamente diferentes das relativas aos vertebrados ou dos seres humanos.
Relações conscientes
A nova declaração sobre a consciência animal desafia conceitos arraigados e sugere uma reavaliação ética no tratamento dos animais, sobretudo em contextos de cativeiro. Jeff Sebo destaca que não basta evitar que os animais sofram dor física, é essencial também proporcionar ambientes que permitam a expressão de seus instintos naturais, a exploração de seus ambientes e a interação dentro de seus sistemas sociais, respeitando a complexidade desses seres.
Essa ampliação do entendimento sobre quais animais podem ser considerados conscientes traz desafios significativos, especialmente quando consideramos insetos, que frequentemente têm relações antagônicas com os humanos. Peter Godfrey-Smith ressalta a dificuldade de harmonizar a relação com seres considerados pragas ou vetores de doenças, um dilema ético que não se aplica tão diretamente a outros animais, como peixes ou polvos.
O bem-estar dos insetos, frequentemente utilizado em pesquisas científicas e negligenciado em debates éticos, foi outro ponto levantado por Matilda Gibbons, Pesquisadora de pós-doutorado da Perelman School Of Medicine na Universidade da Pensilvânia. A declaração pode não estabelecer novos padrões de tratamento imediatamente, mas a experiência mostra que descobertas científicas podem levar a mudanças legislativas, como as que ocorreram na Grã-Bretanha em favor de polvos, caranguejos e lagostas, após estudos demonstrarem sua capacidade de sentir dor e angústia.
Além dos animais, a questão da consciência em sistemas artificiais também é tangenciada. Sebo aponta que, embora os sistemas de IA atuais provavelmente não possuam consciência, os estudos sobre a mente animal instigam uma abordagem cautelosa e humilde sobre o tema da consciência em inteligências artificiais.
Kristin Andrews faz um apelo por mais pesquisas sobre a consciência em organismos frequentemente usados em laboratórios, como nematóides e moscas-da-fruta, propondo que estes sejam objeto de estudos direcionados para entender melhor a consciência. Essa abordagem poderia ampliar significativamente nosso conhecimento sobre a consciência em uma variedade mais ampla de formas de vida.
A Declaração de Nova York sobre a Consciência Animal reforça a ideia de que a consciência pode ser um traço mais comum no reino animal do que se pensava anteriormente, sugerindo que uma gama mais ampla de animais, incluindo aqueles com sistemas nervosos simples ou radicalmente diferentes dos humanos, como invertebrados e certos tipos de peixes, possam ter experiências conscientes.
Além de desafiar o senso comum, declarações como essa provocam a ciência para investigações sobre considerações dessa natureza, uma vez que qualquer mudança de paradigma neste sentido aponta para uma necessidade de reavaliação das práticas de pesquisa e tratamento desses animais, suscitando questões ética, morais em diversos contextos, incluindo da própria pesquisa científica.
Fonte: QuantaMagazine