Conceitos como arte e criatividade vêm sendo repensados. Na indústria da animação, a fase é de grandes mudanças e incertezas. Em meio a uma contração do setor, um fator se destaca como o mais temido e incerto: a Inteligência Artificial, – como era de se esperar. Recentemente, o Festival de Annecy anunciou que exibirá quatro trabalhos que utilizaram IA, selecionados entre dezenas de submissões que empregaram essa tecnologia que materializou a criatividade dos artistas.
O medo de que a IA possa tornar alguns empregos de animação obsoletos ou até mesmo substituir humanos é uma preocupação constante. Há um debate crescente sobre o impacto que essa tecnologia terá não apenas na criatividade artística, mas também no fluxo de trabalho. Para alguns, a IA é vista como uma ferramenta a ser dominada e aplicada com cautela, enquanto questões de direitos autorais, criação e uso geral são resolvidas. Esta visão enxerga a IA como mais uma evolução tecnológica, similar às mudanças que gerações anteriores de artistas enfrentaram com o surgimento do Photoshop no campo da imagem digital, colocando a criatividade humana como fundamental.
Cathal Gaffney, diretor da Brown Bag Films, estúdio baseado em Dublin, descreve os computadores como “lápis caros”, ferramentas para dar vazão à criatividade, ajudando os artistas a realizarem suas visões. Segundo ele, os profissionais que perderão seus empregos devido à IA são aqueles que não se colocarem dispostos a aprender a usar essa tecnologia para melhorar seu trabalho. Gaffney destaca a IA como uma ferramenta de produtividade que acelera certas tarefas e acredita que instituições educacionais têm o dever de ensinar aos alunos os benefícios dessas ferramentas para aumentar a eficiência.
Durante o festival de animação Animation Dingle, na Irlanda, Gaffney participou de um painel chamado “A Ascensão da IA no Reino Criativo“. O objetivo era proporcionar aos estudantes aspirantes a oportunidade de perguntar aos líderes da indústria como essas novas ferramentas afetarão suas perspectivas de carreira. Maurice Galway, cofundador e diretor do Animation Dingle, enfatiza que a resistência à IA não mudará a direção em que a tecnologia está avançando, apontando, portanto, que futuros animadores precisarão aprender a integrar essa tecnologia.
Ferramentas de IA, como Stable Diffusion, que gera imagens a partir de prompts textuais, e Midjourney, utilizada frequentemente para prototipagem rápida, têm revolucionado as expectativas sobre o que é possível com a partir da capacidade generativa da tecnologia, mas essas ferramentas que parecem ter um certo tipo de criatividade ainda estão em desenvolvimento.
O mercado está cheio de geradores de imagens, como DALL-E, ImageFX e NightCafe, com novas ferramentas baseadas em IA sendo constantemente lançadas. Apesar dessas inovações, animadores humanos continuam sendo as principais fontes de ideias e serão por um bom tempo, segundo Delphine Doreau, diretora de programação de animação na Pulse College, em Dublin, ressaltando que os animadores precisarão aprender a usar essas ferramentas para manter suas habilidades atualizadas.
Doreau aponta que a IA usa dados para gerar resultados, mas falta uma visão futurista e criativa, logo, os artistas não serão substituídos, pois a inovação ainda depende do toque humano, algo que a IA não pode replicar completamente. Na animação e em vários outros trabalhos criativos, testemunharemos uma aceleração do trabalho, mas não um substituto para a criatividade humana.
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Animação, arte, criatividade e direitos autorais
A introdução da IA também traz à tona questões complicadas relacionadas aos direitos autorais de propriedade intelectual. Muitas vezes, histórias, personagens e animações passam anos em desenvolvimento, desde a pré-produção até o processo iterativo de produção, onde cenas são repetidamente revisadas e ajustadas. Se os criadores originais alimentam suas materiais na IA para gerar elementos como cenários e eliminam tarefas repetitivas, isso é visto como uma extensão do que já era feito com animações clássicas, como na animação “Tom e Jerry”, onde fundos eram repetidos. Contudo, quando uma empresa ou indivíduo fora desses criadores usa materiais que não possuem para treinar IA, a situação muda drasticamente.
Drew Mullin, executivo de produção da CBC Kids no Canadá, destaca a preocupação dos broadcasters com a IA coletando dados de fontes não licenciadas, levantando problemas de direitos autorais. Para ele, é uma oportunidade para produtores e artistas usarem as ferramentas para usar a criatividade com a possibilidade de reduzir o tempo de produção, mas o controle rigoroso sobre os materiais utilizados para treinar esses sistemas continuará sendo um desafio. Por enquanto, eles estão tentando determinar como responder a essas questões.
Mullin comenta que ferramentas de aprendizado de máquina já existem há algum tempo, e grande parte do software usado pelas equipes já incorpora essas tecnologias. O que fica em destaque é a necessidade de proteger os artistas e produtores e de adotar uma abordagem cautelosa, avaliando cada caso individualmente, pois a tecnologia de IA veio para ficar. Todos os broadcasters do mundo estão desenvolvendo políticas de implementação para essa tecnologia.
Gaffney acredita que as empresas de produção têm a obrigação de discutir como usarão ou não a IA em seus trabalhos de animação e qualquer outro. Ele planeja publicar a política de IA de sua empresa no site nas próximas semanas, o que afetará as habilidades que ele espera dos animadores na Brown Bag e como eles trabalharão com a tecnologia. Ele sinaliza que essa política evoluirá com o tempo, dependendo do desenvolvimento das ferramentas e das novas maneiras que os artistas encontrarão para utilizá-las.
Para Gaffney, é essencial que cada estúdio de animação tenha uma política de IA, assim como têm políticas ambientais, o que é importante tanto para clientes quanto para funcionários entenderem a abordagem da empresa. Ele ressalta que ferramentas como Midjourney são “IA generativa que foi treinada com os direitos autorais de outras pessoas“, de Pixar a Disney e Brown Bag Films, permitindo que qualquer pessoa solicite um design de personagem no estilo de um artista ou de qualquer animação famosa.
Esse é um problema ético significativo. “Se você está no negócio de criar direitos autorais, também deve estar no negócio de respeitar os direitos autorais dos outros“, diz Gaffney, comparando a utilização de IA generativa, que se baseia em direitos autorais alheios, ao uso de software pirata. A automação não desaparecerá tão cedo, mas como a utilizamos mudará, e é crucial não desrespeitar os direitos autorais e a criatividade de terceiros. Existem certos limites que não devem ser ultrapassados.
À medida que a IA continua a se integrar na indústria da animação, e em outras manifestações artísticas, os desafios e as oportunidades precisam ser cuidadosamente considerados e gerenciados, com políticas claras, educação adequada e respeito pelos direitos autorais dos artistas. Ferramentas tão poderosas podem acelerar a produção e expandir a criatividade, sem comprometer a integridade do trabalho original.
Fonte: Variety