A compreensão do cérebro humano sempre foi um dos maiores desafios da ciência. Como diferentes pessoas ou animais executam as mesmas tarefas? Será que utilizamos os mesmos padrões neurais para resolver problemas semelhantes? Com a ajuda da inteligência artificial, pesquisadores estão desvendando essa questão de forma inédita.
Um novo estudo, publicado na revista Nature Methods, apresenta um modelo de aprendizado profundo geométrico chamado MARBLE (Manifold Representation Basis Learning). Essa abordagem inovadora consegue identificar padrões de atividade cerebral compartilhados entre indivíduos, mesmo quando os registros disponíveis são limitados. Testado em macacos e ratos, o sistema conseguiu decodificar sinais cerebrais associados a movimento e navegação com maior precisão do que outros métodos de aprendizado de máquina.

O desafio de compreender a atividade neural
Um dos principais obstáculos no estudo do cérebro é que a atividade neural é incrivelmente complexa e variável. Cada indivíduo pode apresentar diferenças na forma como os neurônios disparam, mesmo quando executa a mesma ação, o que levanta questões fundamentais: há padrões universais na forma como diferentes cérebros processam tarefas semelhantes?
Os experimentos tradicionais em neurociência tentam encontrar esses padrões registrando a atividade de pequenos conjuntos de neurônios e comparando os dados entre diferentes indivíduos. No entanto, esses registros são fragmentados e parciais, o que dificulta a identificação de estruturas neurais comuns.
É nesse cenário que MARBLE se destaca. Em vez de simplesmente analisar os sinais elétricos brutos, a abordagem transforma os dados neurais em representações geométricas, facilitando a identificação de padrões compartilhados entre diferentes cérebros.
O diferencial do MARBLE está no uso de um aprendizado profundo geométrico, uma abordagem que permite mapear sinais neurais em formas matemáticas de alta dimensão. O que significa que em vez de tratar os dados como pontos isolados, o modelo os organiza em estruturas geométricas, revelando padrões dinâmicos recorrentes.
Os pesquisadores explicam que esse método funciona dentro de espaços curvos, onde os padrões neurais são representados como objetos matemáticos complexos. Um exemplo prático é a forma de um toro (superfície semelhante a um donut), que pode representar a dinâmica de grupos de neurônios interagindo ao longo do tempo.
Dessa forma, MARBLE aprende a identificar motivos neurais dinâmicos, ou seja, sequências recorrentes de atividade cerebral que aparecem em diferentes indivíduos realizando a mesma tarefa.
O que a IA descobriu sobre o cérebro?
Para testar a eficácia do MARBLE, os pesquisadores aplicaram o modelo em dois conjuntos de dados distintos:
– Macacos realizando um movimento de alcance com os braços, enquanto sua atividade no córtex pré-motor era registrada.
– Ratos navegando por um labirinto, com registros da atividade neural em seu hipocampo.
Os resultados foram promissores:
1. Padrões neurais compartilhados foram identificados – MARBLE mostrou que diferentes indivíduos, ao adotarem estratégias mentais semelhantes, apresentavam motivos neurais idênticos em suas atividades cerebrais.
2. Precisão superior a outros métodos – O modelo conseguiu decodificar os sinais cerebrais com mais clareza e coerência do que outras técnicas de aprendizado de máquina.
3. Generalização para múltiplas condições experimentais – MARBLE integrou dados de diferentes experimentos em uma estrutura unificada, sem necessidade de um formato predefinido, tornando-o mais flexível que abordagens tradicionais.
Essa capacidade de encontrar padrões comuns entre indivíduos sugere que, embora cada cérebro seja único, existem estruturas fundamentais compartilhadas na forma como processamos informações e executamos ações.
Aplicações e impactos futuros
Os avanços proporcionados pelo MARBLE vão além da pesquisa acadêmica, podendo ter impacto direto em diversas áreas, especialmente em interfaces cérebro-máquina e neurotecnologia aplicada.
1. Melhorias em Interfaces Cérebro-Máquina
Interfaces cérebro-máquina (BCIs, do inglês Brain-Computer Interfaces) já são usadas para ajudar pessoas com paralisia a controlarem dispositivos apenas com a mente. O MARBLE pode tornar essas interfaces mais eficientes e precisas, ao identificar padrões neurais mais consistentes para converter pensamento em ação.
2. Avanços na Pesquisa em Neurociência
A possibilidade de comparar padrões cerebrais entre indivíduos pode ajudar pesquisadores a entender melhor como o cérebro organiza informações e como diferentes pessoas processam o mundo ao seu redor. Isso pode ter implicações diretas para o estudo de distúrbios neurológicos e psiquiátricos, como o autismo e a esquizofrenia.
3. Aplicações Multidisciplinares
Embora tenha sido desenvolvido para neurociência, o MARBLE pode ser usado em outras áreas científicas que lidam com dados dinâmicos complexos, como biologia, física e até mesmo inteligência artificial aplicada a modelos climáticos e sociais.
A combinação de inteligência artificial e neurociência está revolucionando nossa compreensão do cérebro, mostrando que é possível ir além da simples observação de sinais elétricos cerebrais e reconstruir os padrões ocultos que moldam o nosso pensamento e comportamento.
Se essa tecnologia continuar evoluindo, podemos esperar avanços significativos em interfaces neurais, tratamento de doenças neurológicas e até mesmo novas formas de interação entre humanos e máquinas.
Ainda há desafios a serem superados, como a necessidade de mais dados para refinar os modelos e entender até que ponto os padrões identificados são universais ou dependentes de fatores específicos. No entanto, uma coisa é certa: estamos cada vez mais próximos de desvendar como diferentes cérebros resolvem problemas de maneira surpreendentemente semelhante.
A inteligência artificial está se tornando não apenas uma ferramenta para interpretar a atividade neural, mas também um meio para explorar o que nos torna humanos.
Fonte: NeuroscienceNews