Você já ouviu falar em afantasia? Bem, que nossa mente é fundamental para interpretar o mundo ao nosso redor, isso não é novidade. Mas a complexidade da mente humana apresenta nuances curiosas.
Há alguns anos, Sarah Shomstein, uma cientista da visão, teve uma descoberta inesperada sobre sua própria mente durante um seminário. A palestra estava em andamento quando o apresentador pediu à audiência que imaginasse uma maçã. Sarah fechou os olhos e tentou visualizar a fruta. Ao abrir os olhos, foi solicitado que todos avaliassem a nitidez da imagem mental da maçã, mas Sarah ficou surpresa ao perceber que ela não conseguia “ver” a maçã. Podia pensar sobre o sabor, a forma, a cor e como a luz refletia nela, mas a imagem não aparecia em sua mente, que permanecia “completamente preta”.
Enquanto a maioria de seus colegas relatou ver a maçã mentalmente, alguns com nitidez e outros de forma vaga, Sarah percebeu que sua experiência era diferente. Ela é parte de um grupo pequeno, entre 1% e 4% da população, que não possui imagens mentais, uma condição chamada afantasia. Embora o fenômeno tenha sido descrito há mais de 140 anos, o termo “afantasia” só foi cunhado em 2015, despertando o interesse de estudiosos do funcionamento da imaginação.
Para os neurocientistas, afantasia não é um transtorno, mas uma maneira distinta de vivenciar o mundo. Estudos iniciais sugerem que diferenças nas conexões cerebrais entre regiões envolvidas na visão, memória e tomada de decisão podem explicar por que algumas pessoas não conseguem formar imagens mentais. Curiosamente, muitas pessoas com afantasia conseguem sonhar com imagens e reconhecer rostos e objetos, o que indica que suas mentes armazenam informações visuais, mesmo que não possam acessá-las voluntariamente para criar imagens mentais.
Essas experiências variam dramaticamente entre as pessoas. A afantasia e a hiperfantasia — o oposto, onde as pessoas têm imagens mentais vívidas como a realidade — são extremos de um espectro que inclui uma vasta gama de experiências internas. Segundo Nadine Dijkstra, pesquisadora de percepção na University College London, a complexidade dessas variações torna o estudo dessas condições desafiador. “Achamos que sabemos o que é a imaginação mental“, diz ela. “Mas, quando realmente investigamos, cada pessoa experimenta algo completamente diferente.”
Essa diversidade de experiências torna fascinante o estudo de afantasia e hiperfantasia, apesar das dificuldades envolvidas.
Clica aqui para ver como seu cérebro te prega peças!
Como a mente “enxerga”
Para entender como formamos imagens mentais, podemos pensar na percepção de forma inversa. Quando vemos algo diante de nós, tentamos dar sentido a essa imagem. Ondas eletromagnéticas entram em nossos olhos, são convertidas em sinais neurais e enviadas para a parte posterior do cérebro, onde são processadas no córtex visual. Em seguida, essas informações fluem para a frente do cérebro, atingindo regiões de memória ou semântica, até que reconhecemos que estamos olhando para um gato ou uma xícara de café.
Segundo Dijkstra, durante a imaginação, basicamente fazemos o oposto. Começamos sabendo o que queremos imaginar, como um gato, e as informações fluem das regiões de memória e semântica do cérebro para o córtex visual, onde a imagem é esboçada. No entanto, essa é apenas uma teoria de trabalho sobre a imaginação visual, e ainda há muito que não sabemos, como onde exatamente começa a imagem mental e o papel exato do córtex visual.
Esses processos eram ainda menos compreendidos em 2003, quando um homem bem articulado e inteligente de 60 anos descreveu a Adam Zeman, um neurologista das universidades de Edimburgo e Exeter como, após um procedimento cardíaco, ele não conseguia mais formar imagens mentais. O paciente relatou que antes, ao ler um romance, ele via os personagens e as cenas. Quando perdia algo, podia visualizar onde poderia estar. Mas após o procedimento, seu palco mental estava vazio.
Na época, evidências mostravam que o córtex visual se ativa quando as pessoas imaginam ou percebem algo, o que naturalmente levou o neurologista ao questionamento se o córtex visual de seu paciente havia sido desativado de alguma forma. Ele colocou o paciente em uma máquina de ressonância magnética funcional (fMRI), que mede o fluxo sanguíneo no cérebro como um proxy para a atividade neural, e mostrou ao paciente fotos de pessoas famosas e depois pediu que as imaginasse, e verificou que nas varreduras, o córtex visual só se iluminava quando ele via as fotos.
Em 2010, Zeman descreveu o caso como uma “imaginação cega”. Após a revista Discover cobrir o estudo, Zeman ouviu de cerca de 20 pessoas que, como seu paciente, não podiam visualizar imagens em suas mentes, mas sua condição era diferente em um aspecto: não era um caso pontual, mas os relatos eram de que nunca tiveram essa habilidade.
Aparentemente, essa era uma experiência relativamente comum. Em 2015, Zeman consultou um amigo classicista para encontrar um nome para o fenômeno. O classicista sugeriu adaptar a palavra “phantasia” de Aristóteles, que significa “olho da mente”, e assim nasceu o termo “afantasia”. Logo após a equipe de Zeman relatar o novo termo, o The New York Times publicou uma matéria sobre a afantasia, gerando um novo surto de interesse. Zeman, que já recebeu mais de 17.000 e-mails de pessoas querendo saber mais sobre seu olho da mente, ou a falta dele, diz que criar o termo gerou um grande interesse sobre o assunto.
Ao redor do mundo, amigos e familiares discutiram se conseguiam imaginar uma maçã, filósofos usaram a afantasia como pretexto para explorar explicações para a mente, exposições de arte exibiram obras criadas por pessoas com essas extremas habilidades de visualização, e cientistas começaram a imaginar novas maneiras de estudar o fenômeno como uma oportunidade para entender como funciona a imaginação.
Conexões do cérebro
Estudar a afantasia apresentou diversos desafios, principalmente pela dificuldade de medir a realidade interna, a experiência subjetiva, de uma pessoa. Durante anos, a pesquisa concentrou-se em provar que a condição realmente existia, como comenta Sarah Shomstein.
Estudos iniciais dependiam dos relatos dos participantes, utilizando, por exemplo, o Questionário de Vivacidade da Imaginação Visual, criado em 1973, antes mesmo do termo “afantasia” ser cunhado. Esse tipo de teste, que se baseia na introspecção e na autoavaliação, levantou dúvidas entre alguns neurocientistas sobre a veracidade da afantasia. Havia a possibilidade de que as diferenças relatadas na imaginação visual fossem apenas um problema de comunicação, dadas as ambiguidades na descrição dos nossos mundos internos.
Rebecca Keogh, pesquisadora em neurociência cognitiva na Macquarie University, Austrália, estava concluindo seu doutorado quando Zeman introduziu o termo “afantasia” em 2015. Keogh e seu orientador, Joel Pearson, decidiram investigar essa condição mais a fundo, criando testes para medir a capacidade da mente de reter uma imagem visual e avaliar as respostas fisiológicas a imagens mentais. Os resultados confirmaram que a afantasia não era apenas uma diferença na forma como as pessoas descrevem suas experiências, mas que de fato havia uma diferença real na experiência visual subjetiva.
Cornelia McCormick, pesquisadora de memória na Universidade de Bonn, na Alemanha, que inicialmente era cética sobre a ausência de imagens mentais em algumas pessoas, ficou curiosa sobre como esses indivíduos lembram de suas próprias vidas. Para investigar, McCormick e sua equipe realizaram varreduras cerebrais em pessoas com e sem afantasia enquanto elas recordavam memórias pessoais, e verificaram que indivíduos com afantasia tendem a ter memórias autobiográficas mais fracas e menos atividade no hipocampo, que é crucial para a codificação e recuperação de memórias. Surpreendentemente, o córtex visual desses indivíduos mostrou uma atividade mais intensa, o que levou McCormick a especular que essa hiperatividade poderia inibir a formação de imagens claras na mente.
Estudos adicionais também mostraram que pessoas com afantasia ativam o córtex visual ao tentar imaginar algo, sugerindo que elas têm acesso à informação visual, mas que têm dificuldade para integrá-la em uma experiência subjetiva completa. Isso explica por que a maioria dos afantásicos pode reconhecer objetos e rostos e ainda sonhar com imagens vívidas.
Zeman conduziu estudos utilizando fMRI para escanear os cérebros de voluntários em repouso e viu que em pessoas com afantasia, as conexões entre os centros de controle de alto nível do cérebro (córtex pré-frontal) e os centros de percepção de baixo nível (córtex visual) eram mais fracas comparadas às de pessoas com hiperfantasia.
Apoiando essas descobertas, temos o estudo recente de Paolo Bartolomeo, neurologista do Instituto do Cérebro de Paris, que conduziu participantes com e sem afantasia a imaginarem formas, rostos e lugares enquanto estavam em scanners cerebrais. Em ambos os grupos, áreas cerebrais semelhantes foram ativadas, mas os afantásicos mostraram desconexões entre o córtex pré-frontal e uma região envolvida no processamento visual de alto nível.
Esses estudos sugerem que as conexões entre os centros de visão e outras regiões integrativas do cérebro são diferentes em pessoas com afantasia. Segundo Bence Nanay, professor de psicologia filosófica na Universidade de Antuérpia, é um indicativo de que há mais de um tipo da condição e que existe um espectro inteiro de capacidades de visualização interna entre as pessoas.
Sem padrões da afantasia e hiperfantasia
As experiências de afantasia variam muito. Alguns conseguem “ouvir” em suas mentes, enquanto outros não conseguem imaginar nem imagens nem sons. A memória autobiográfica também difere: algumas pessoas têm uma memória excelente, mas muitas não. Há aqueles que experimentam flashes involuntários de imagens mentais. A maioria das pessoas sonha com imagens, embora algumas não o façam. Em geral, é uma condição congênita, mas uma pequena parcela das pessoas a desenvolve após uma lesão. Isso mostra que não é um fenômeno uniforme.
Da mesma forma, a hiperfantasia também apresenta variações. As pessoas com hiperfantasia veem imagens mentais tão reais quanto as coisas que realmente veem. Essas imagens não são alucinações, embora possam parecer muito reais, elas sabem que não são. Existe um grupo de pessoas com imaginação extremamente vívida, conhecidas como sonhadores desadaptativos, que preferem viver em suas imaginações em vez da vida real, o que muitas vezes os fazem negligenciam atividades diárias como ir à escola, ao trabalho ou socializar, pois a vida em suas mentes é tão real quanto a realidade.
Apesar de a pesquisa sobre esses extremos de imaginação ainda ser inicial, os cientistas concordam em um ponto: nem afantasia nem hiperfantasia são transtornos. Pessoas em qualquer extremo do espectro conseguem viver sem problemas. Muitas vezes, afantásicos descrevem objetos e pessoas de suas memórias mesmo sem imagens claras em suas mentes. Eles simplesmente sabem como descrever, o que mostra que esses fenômenos são apenas variantes do cérebro humano.
Pode-se pensar que afantasia implica uma vida mental empobrecida, mas na verdade, isso pode ter suas vantagens, e proteger contra problemas de saúde mental associados a imagens mentais vívidas. Por outro lado, pessoas com hiperfantasia podem ter um risco aumentado desses problemas.
Além disso, a falta de imagens mentais não significa falta de imaginação. Muitos artistas e pessoas criativas, como o romancista Mark Lawrence e o co-criador do navegador Firefox, Blake Ross, revelaram ter afantasia. Para muitos, descobrir essa condição é uma revelação pessoal significativa. Blake Ross, por exemplo, descobriu que sempre pensou que “contar carneirinhos” fosse apenas uma metáfora.
Tudo isso aponta que a realidade que percebemos, cheiramos, ouvimos e pensamos é reconstruída em nossas mente de maneiras únicas, e que mesmo uma experiência compartilhada, como a visão de uma maçã, pode ser drasticamente diferente de uma pessoa para outra.
Fonte: QuantaMagazine