A arte é uma forma humana desde os primórdios: A cena do poço de 17.000 anos e a estatueta de marfim alemã do “Homem-Leão” alemão de 40.000 atrás são provas disso.
Mas acredite: Há arte ainda mais antiga. Nas profundezas da península sudoeste de Sulawesi, na Indonésia, erguem-se imponentes montanhas cársticas que se destacam na paisagem como monumentais esculturas naturais.
As montanhas cársticas são formações geológicas notáveis, criadas pela dissolução de rochas solúveis como calcário, dolomita e gesso, um processo que resulta em características únicas como cavernas, grutas, fendas e fissuras. Nessas paisagens, é comum encontrar estalactites e estalagmites em cavernas, bem como sumidouros e dolinas na superfície. Além disso, sistemas de rios subterrâneos são frequentemente formados devido à erosão contínua causada pela água rica em minerais.
A região de Maros-Pangkep em Sulawesi é conhecida por suas impressionantes montanhas que abrigam centenas de cavernas e abrigos rochosos. Estas montanhas, cobertas por uma vegetação tropical exuberante, revelam um tesouro inestimável da humanidade: as mais antigas pinturas rupestres conhecidas, datadas de mais de 45.000 anos atrás. Estas obras de arte, que incluem estênceis pintados a mão, figuras humanas estilizadas e animais pintados com pigmentos ocre, são testemunhas silenciosas de uma era longínqua e fascinante.
Mas, infelizmente, este patrimônio está em risco. Rustan Lebe, arqueólogo do Gabinete de Preservação Cultural, uma agência governamental indonésia em Makassar, vem documentando meticulosamente essas cavernas e os tesouros artísticos que abrigam, desde 2016. Ao longo de seus estudos, Lebe e sua equipe descobriram 654 cavernas, mas estimam que menos da metade das colinas cársticas foram exploradas. Surpreendentemente, cerca de 65% dos locais contêm imagens, algumas das quais estão entre as mais antigas já registradas no mundo.
Contudo, uma preocupante observação feita por Lebe e outros arqueólogos é que essas magníficas pinturas estão desaparecendo diante de seus olhos, por um fenômeno conhecido como exfoliação, que ocorre quando a superfície dura e cristalizada das paredes das cavernas, sobre a qual os antigos humanos pintaram, começa a se soltar do calcário branco e pulverulento (textura solta e quase em pó da rocha, que se desfaz facilmente ao toque ou sob pressão) abaixo. Este processo está levando ao alarmante desaparecimento de painéis inteiros de imagens que sobreviveram desde a última era glacial.
As causas desse fenômeno são um mistério que intriga os pesquisadores. Será que a poluição gerada pelos carros e caminhões nas proximidades está contribuindo para isso? Ou talvez a presença de visitantes, que alteram o microclima das cavernas com sua respiração? Mudanças climáticas e padrões meteorológicos alterados também são suspeitos. Além disso, a indústria local, especialmente a mineração de mármore e calcário, que gera poeira e vibrações, pode estar afetando a integridade dessas obras de arte ancestrais.
Diante dessa encruzilhada de possíveis causas, uma corrida contra o tempo se inicia. Em uma missão para salvar essas pinturas antes que desapareçam para sempre, uma aliança improvável se forma. Arqueólogos governamentais, cientistas locais e internacionais, executivos de empresas de mineração e investidores de lugares tão distantes quanto a Noruega estão se unindo para entender e interromper o processo de deterioração destas preciosas relíquias históricas.
Este desafio é apenas “a ponta de um iceberg bastante aterrorizante”, nas palavras de Jillian Huntley, arqueóloga da Universidade Griffith, na Austrália. A urgência em financiar mais pesquisas nesta área é palpável. Estamos diante de um enigma complexo, onde a ciência e a preservação do nosso legado histórico se entrelaçam.
O desafio da preservação de um legado milenar
Na jornada para preservar estas pinturas rupestres, o tempo e a natureza parecem conspirar contra os esforços dos cientistas. A descoberta surpreendente de que as estênceis de mãos e as figuras de porcos em Sulawesi datam de 40.000 anos atrás, feita pelos arqueólogos Adam Brumm da Universidade Griffith, em Brisbane e Maxime Aubert, da Universidade Griffith, em Southport , em 2011 (neste ano da descoberta estavam na Universidade de Wollongong, na Austrália), não só desafiou a compreensão histórica da arte rupestre, mas também acendeu um sinal de alerta sobre a urgência de proteger estes testemunhos da criatividade humana.
As pinturas, realizadas sobre uma crosta endurecida formada pela passagem de água carregada de carbonato de cálcio através das paredes das cavernas, estão agora em risco de serem perdidas para sempre. O processo que uma vez preservou essas obras-primas está agora, paradoxalmente, contribuindo para a sua deterioração.
Benjamin Smith, arqueólogo e especialista em arte rupestre da Universidade da Austrália Ocidental enfatiza: “Se você perder a crosta, perderá a arte rupestre.“. À medida que fragmentos de crosta se desprendem, as pinturas se perdem.
A arte milenar de Bulu’ Sipong 4
A visita a Leang Bulu’ Sipong 4, um monte em forma de cúpula, uma joia escondida nas proximidades do escritório central da empresa de cimento Semen Tonasa, é uma verdadeira viagem no tempo. Ao subir a escadaria de aço e entrar na caverna, somos transportados para um mundo antigo, onde o ato de criar arte era tanto um mistério quanto uma celebração. Lá, nas paredes da caverna, jazem as marcas tangíveis dos primeiros contadores de histórias da humanidade.
As estênceis de mãos, feitas com um sopro de ocre sobre a rocha, são mais do que meros desenhos, são assinaturas de uma época onde a expressão artística começava a florescer. Ao seguir Rustan Lebe e os funcionários da empresa através das câmaras da caverna, percebemos que cada passo revela uma nova camada de história. As figuras humanas e animais nas paredes falam de um tempo onde a arte, a religião e a vida cotidiana estavam inextricavelmente ligadas.
Mas é na câmara superior que o verdadeiro esplendor se revela. O painel de 4,5 metros de largura ilustra uma cena de caça, com figuras de caçadores e o anoa (Bubalus sp.), um búfalo anão típico de Sulawesi. Essas imagens, embora possam parecer simples representações de uma caça, carregam um significado muito mais profundo. Os caçadores, retratados como teriantropos — seres híbridos, parte humanos, parte animais —, sugerem uma conexão espiritual e mitológica entre o homem e a natureza, uma narrativa que vai além do mero ato de caçar.
Adam Brumm e Maxime Aubert, com sua pesquisa pioneira, revelaram que este painel é a mais antiga obra de arte narrativa conhecida, datando de pelo menos 43.900 anos atrás, desafiando nossa compreensão da evolução da arte humana e reforçando a ideia de que nossos ancestrais já possuíam uma complexidade cognitiva e cultural surpreendente.
A visita a Bulu’ Sipong 4, no entanto, não é apenas um encontro com a arte, é um confronto com a vulnerabilidade dessa herança milenar. As áreas onde a crosta protetora da caverna se desintegrou, deixando para trás apenas o calcário branco e sem adornos, são um lembrete sombrio de que estamos perdendo esses tesouros inestimáveis. Cada mancha branca nas paredes da caverna marca o local onde uma vez existiu uma história, agora irremediavelmente perdida.
Industrialização e preservação
Em meio ao crescente debate sobre a conservação das pinturas rupestres de Bulu’ Sipong 4, o ano de 2019 trouxe uma reviravolta com a publicação dos estudos de Brumm e Aubert. A atenção da mídia voltou-se para a possibilidade de que as operações da Semen Tonasa, a empresa de cimento situada nas proximidades, pudessem estar acelerando a deterioração dessas obras-primas milenares. Enquanto relatos históricos sugerem que a exfoliação é um processo antigo, a percepção de um aumento na velocidade desse fenômeno nos últimos tempos levanta questões preocupantes.
Localizadas a uma curta distância da fábrica de cimento e do local de mineração a céu aberto da Semen Tonasa, cavernas, como Bulu’ Sipong 4, encontram-se em uma encruzilhada entre o progresso industrial e a preservação do patrimônio cultural. As imagens de caminhões levantando poeira nas proximidades da caverna tornam tangível a ameaça que paira sobre esses registros históricos.
A preocupação internacional sobre o destino dessas pinturas ganhou impulso com a intervenção do Fundo de Pensão Global do Governo Norueguês (GPFG – Government Pension Fund Global), um investidor minoritário na SIG, empresa-mãe da Semen Tonasa. Movido por um mandato ético, o fundo questionou a empresa sobre as medidas adotadas para proteger os sítios de patrimônio cultural locais, incluindo Bulu’ Sipong 4. Esta ação destacou o papel que os investidores internacionais podem desempenhar na salvaguarda da herança cultural.
Em 2022, a contratação dos arqueólogos independentes Matthew Whincop e Noel Hidalgo Tan para avaliar os impactos das atividades da Semen Tonasa na arte rupestre nas proximidades trouxe um novo enfoque à questão. A principal dificuldade enfrentada por eles foi a escassez de dados concretos, sobre taxas de exfoliação, níveis de poeira, umidade, poluição e vibrações decorrentes das explosões e dos caminhões de mineração. Além disso, em função de o registro abranger um curto período, era impossível determinar quais fatores estariam causando os dados às imagens, refletindo, portanto, a necessidade urgente de um monitoramento mais robusto e abrangente das condições ambientais ao redor das cavernas.
Paul Taçon, cientista de arte rupestre da Universidade Griffith, em Southport, reitera a importância crucial do monitoramento contínuo para a detecção e prevenção de danos. Nesse contexto, os esforços de Halmar Halide, hidrometeorologista da Universidade Hasanuddin em Makassar, em colaboração com Lebe, para monitorar partículas no ar, temperatura, umidade e a extensão da exfoliação são passos vitais na direção certa. Essa parceria, conta inclusive com a participação da Semen Tonasa, sinalizando um modelo de como a indústria e a ciência podem trabalhar juntas na preservação de sítios históricos.
Johanna Daunan, chefe de sustentabilidade da SIG em Jacarta, admite a falta de expertise da empresa em gestão de patrimônio cultural, mas reforça o compromisso da companhia em proteger esses locais através de, por exemplo, a implementação já realizada de medidas para reduzir a quantidade de poeira gerada por suas operações. No entanto, a ausência de regulamentações governamentais claras sobre os níveis aceitáveis de poeira, poluição e vibrações para a preservação da arte rupestre destaca uma lacuna significativa na legislação de proteção ao patrimônio.
Este cenário complexo, onde a preservação do passado encontra os desafios do presente, ilustra o delicado equilíbrio necessário para garantir que as maravilhas da história humana não sejam perdidas na poeira da modernidade.
Os mistérios da deterioração
Na complexidade do entendimento dos fatores que ameaçam as pinturas rupestres de Maros–Pangkep, emerge o desafio científico. Como Rustan Lebe e muitos outros têm notado, a poeira das minas próximas, incluindo a da Semen Tonasa, é vista como uma grande ameaça para a integridade dessas antigas obras de arte, mas especialistas reconhecem que essa é apenas uma peça do quebra-cabeça.
As operações de mineração na região, incluindo as da Bosowa Semen, levantam preocupações adicionais. À Nature, um representante da Bosowa Semen diz que desconhece sítios históricos nos lugares onde tem concessão para atuação e que, se isso mudar, informarão aos pesquisadores, que hoje não têm permissão para explorar essas áreas.
O cenário global de deterioração da arte rupestre, do qual Maros–Pangkep é apenas um exemplo, é um mosaico de causas variadas. Desde as interações humanas prejudiciais, como vistas na Índia e na Tanzânia, até as mudanças microclimáticas induzidas pela presença humana, como no caso da caverna de Lascaux, – as ameaças são diversificadas e complexas. A poluição, originada de fontes variadas, também desempenha um papel crucial, transformando-se em ácidos que corroem a rocha e a arte nela presente.
A pesquisa de Jillian Huntley, arqueóloga da Universidade Griffith, em Southport, adiciona a influência das mudanças climáticas ao desafio. Os cristais de sal, encontrados por ela por trás da crosta das pinturas, são sinais do dano ambiental oculto, ampliado pelos ciclos de umidade e seca que aumentam com as mudanças climáticas. Esses ciclos de expansão e contração dos sais estão gradualmente desprendendo a crosta protetora das pinturas, um processo invisível, mas incessante.
Este cenário é ainda mais complicado pela interação entre a umidade e a poeira. Como aponta Matthew Whincop, a umidade pode fazer com que partículas de poeira grudem nas paredes das cavernas, obscurecendo as imagens e contribuindo para o processo de exfoliação. Dentro de Bulu’ Sipong 4, a presença de poeira sobre todas as superfícies é um indício preocupante, embora, na ausência de dados concretos, não se possa afirmar categoricamente que seja uma causa direta da deterioração.
A falta de dados definitivos, conforme observado no relatório de Whincop ao Conselho de Ética, reflete um impasse frustrante, em que não é possível, com as informações atuais, atribuir a aceleração da exfoliação a uma única causa, seja ela a mudança climática, as atividades de mineração da Semen Tonasa, ou uma combinação de múltiplos fatores, destacando a necessidade urgente de coleta de dados mais abrangente e sistemática, não apenas em Maros–Pangkep, mas em sítios de arte rupestre em todo o mundo.
O caminho para preservação da arte ancestral
Diante dos desafios enfrentados para preservar as pinturas rupestres de Maros–Pangkep, a jornada de Semen Tonasa sob a vigilância do Norges Bank(que gere o GPFG da Noruega), simboliza um importante passo adiante. A iniciativa de implementar um plano de gestão do patrimônio, elaborado pelo arqueólogo independente baseado na cidade de Cebu, John Peterson, é um sinal promissor de que as medidas necessárias estão sendo tomadas, ainda que gradualmente. Essa abordagem meticulosa e baseada em dados oferece uma luz de esperança para descobrir exatamente o que está afetando estas antigas obras de arte.
Os esforços recentes da empresa, como o selamento da estrada próxima à montanha Bulu’ Sipong e o aumento do uso de caminhões-pipa para controlar a poeira, são passos pequenos, mas significativos, em direção à minimização dos impactos ambientais. Além disso, a formação de uma equipe dedicada à sustentabilidade mostra um comprometimento crescente com a preservação deste patrimônio inestimável.
No entanto, a luta para salvar esses tesouros culturais vai além das ações de uma única empresa. A limitação de recursos enfrentada pela equipe de Lebe e a falta de conscientização geral na Indonésia sobre a riqueza das cavernas na região de Maros–Pangkep destacam a necessidade de um esforço colaborativo mais amplo. O reconhecimento da área como um Geoparque Global da UNESCO é um passo encorajador que pode catalisar o apoio do governo indonésio e da comunidade internacional.
A urgência de investigações mais profundas para interromper a deterioração destas pinturas é reforçada pela iniciativa de Adam Brumm em criar um arquivo visual 3D das obras de arte, para não apenas auxilia na conservação, mas também para permitir que as pessoas vivenciem a arte de maneira virtual, reduzindo o impacto físico sobre esses locais sensíveis.
Parado ao lado das pinturas descascadas nas cavernas, é difícil não se maravilhar com a vastidão de sua história. A possibilidade de que ainda existam mais estênceis de mãos, porcos verrucosos e cenas de caça escondidas em cavernas ainda não descobertas em Maros–Pangkep é uma lembrança pungente de que cada momento conta na corrida para preservar esses vestígios de um passado distante.
Em última análise, a preservação da arte rupestre de Maros–Pangkep é a salvaguarda de uma janela para as origens da expressão, arte e criatividade humanas, através de um legado que nos conecta ao nosso passado ancestral.
Fonte: Nature