Falar de inteligência artificial é falar de inspiração no cérebro humano, aprendizado, adaptação e de consumo de energia. São questões fundacionais que entram em cena para o desenvolvimento dessa tecnologia. Com isso, surge cada vez mais frequentemente, o assunto sobre o avanço dos chamados chips neuromórficos, que, grosso modo, são dispositivos projetados para funcionar de maneira parecida com o cérebro humano.

Agora, um novo desenvolvimento da Universidade KAIST, na Coreia do Sul, acaba de dar um passo inédito nessa direção: um chip que não apenas imita o cérebro, mas aprende e se adapta por conta própria, assim como nossos neurônios fazem naturalmente.
Batizado de “Frequency Switching Neuristor”, o novo chip é capaz de ajustar sua própria sensibilidade com base na experiência anterior. Essa capacidade é inspirada diretamente no cérebro humano, sendo conhecida como plasticidade intrínseca. Trata-se de um conceito da neurociência que descreve a habilidade dos neurônios de modificar sua própria excitabilidade conforme aprendem e se adaptam ao longo da vida. No chip, essa função foi reproduzida de forma eletrônica, permitindo que ele aprenda e se ajuste de maneira autônoma.
Nosso cérebro não aprende apenas fortalecendo ou enfraquecendo conexões entre neurônios (algo conhecido como plasticidade sináptica). Cada neurônio individual também é capaz de mudar sua própria excitabilidade, ou seja, o quanto ele “se empolga” para responder a um estímulo.
Um exemplo simples: quando ouvimos o mesmo som repetidamente, com o tempo deixamos de nos assustar. O cérebro “aprende” que aquilo não representa uma ameaça e ajusta a resposta. Esse é o funcionamento prático da plasticidade intrínseca. É como se fosse um tipo de memória interna que modula a sensibilidade do neurônio conforme a experiência.
Até agora, chips de inteligência artificial tradicionais não conseguiam reproduzir esse tipo de comportamento adaptativo de forma autônoma. O que temos agora disponíveis são chips que são muito bons em reconhecer padrões, mas precisam de energia constante e não se ajustam sozinhos quando o ambiente muda. E é exatamente essa limitação que o novo chip da KAIST tenta resolver.
O cérebro como modelo
O professor Kyung Min Kim, do Departamento de Ciência e Engenharia de Materiais da KAIST, liderou o time responsável por essa inovação, com a ideia central de desenvolver desenvolver um chip semicondutor extremamente eficiente em energia, ou seja, capaz de realizar suas funções consumindo o mínimo possível de eletricidade. Esse tipo de tecnologia, chamada de semicondutor de ultrabaixo consumo, é essencial para dispositivos que precisam aprender, reagir e operar por longos períodos sem gastar muita energia, como acontece naturalmente no cérebro humano.
O resultado foi o Frequency Switching Neuristor, que acaba por ser uma espécie de neurônio artificial que ajusta automaticamente a frequência dos seus sinais elétricos, como se “aprendesse” com a própria experiência.
Para criar esse comportamento, os pesquisadores combinaram dois tipos de memristores, que são componentes eletrônicos que lembram as sinapses do cérebro por conseguirem “memorizar” a quantidade de corrente que já passou por eles:
Memristor volátil do tipo Mott: reage apenas por um instante e depois volta ao estado original. Serve para respostas rápidas e temporárias.
Memristor não volátil: Mantém na memória as informações recebidas por mais tempo, funcionando como uma espécie de “lembrança” do chip.
A interação entre esses dois elementos permite ao chip controlar a frequência dos impulsos elétricos. Em outras palavras, ele regula quantas vezes “dispara” um sinal. Esse ajuste é essencial para reproduzir o comportamento de um neurônio biológico, que também modula sua taxa de disparo conforme a situação.
Um chip que economiza energia… e se recupera sozinho!
Os cientistas testaram o novo neuristor em simulações de redes neurais esparsas, um tipo de rede artificial mais parecida com o cérebro humano por trabalhar com menos conexões e mais eficiência. O resultado foi impressionante: o chip conseguiu o mesmo desempenho de um sistema tradicional, mas consumindo 27,7% menos energia.
Essa economia acontece porque o dispositivo não precisa recalcular tudo o tempo todo, ele “lembra” o que aprendeu e ajusta apenas o necessário.
Mas talvez o aspecto mais surpreendente seja outro: o chip também demonstrou capacidade de auto-recuperação. Quando os pesquisadores simularam falhas em alguns de seus “neurônios artificiais”, a rede foi capaz de se reorganizar e restaurar o desempenho quase por completo, sem intervenção externa.
Em termos práticos, isso significa que o sistema é capaz de “se consertar” sozinho após danos parciais, da mesma forma que o cérebro consegue compensar a perda de algumas conexões neuronais. Essa característica é especialmente valiosa para aplicações que exigem alta confiabilidade e funcionamento contínuo, como carros autônomos ou sistemas embarcados em dispositivos inteligentes.
As três qualidades, eficiência energética, aprendizado autônomo e resiliência, fazem do Frequency Switching Neuristor uma das inovações mais promissoras na área de computação neuromórfica.
Enquanto os chips convencionais separam processamento e memória (o que consome muita energia), o novo dispositivo combina as duas funções no mesmo componente, criando um sistema mais parecido com o cérebro, que também armazena e processa informações de maneira integrada.
Essa mudança de paradigma é essencial para o futuro da inteligência artificial. Em vez de depender de servidores enormes e com alto consumo energético, a próxima geração de sistemas poderá “pensar e aprender” localmente, em tempo real e com muito menos energia.
Essa abordagem tem impacto direto em áreas como:
Edge computing: processamentos feitos “na ponta”, em dispositivos menores, sem precisar de nuvem.
Veículos autônomos: que exigem respostas imediatas e sistemas capazes de se adaptar ao ambiente.
Dispositivos IoT (Internet das Coisas): sensores inteligentes, câmeras e aparelhos domésticos que precisam operar com eficiência e estabilidade.
Ao implementar sinteticamente a plasticidade intrínseca dentro de um único semicondutor, os cientistas da KAIST aproximaram o mundo eletrônico do funcionamento biológico do cérebro como nunca antes, mostrando que o futuro da inteligência artificial pode depender menos de “mais poder de processamento” e mais de inteligência estrutural, ou seja, dessa capacidade de os próprios sistemas se reorganizarem, lembrarem e se adaptarem.
O professor Kyung Min Kim resume bem o impacto da descoberta, inspirada no cérebro, dizendo que esta pesquisa leva a eficiência energética e a estabilidade do hardware de IA a um novo nível, em que os dispositivos possam “lembrar o próprio estado” e “se ajustarem ou se recuperarem de danos”, algo fundamental para sistemas que precisam operar de forma contínua e confiável.
A pesquisa contou com apoio da Samsung Electronics e da Fundação Nacional de Pesquisa da Coreia (NRF), reforçando o interesse industrial e científico nesse tipo de tecnologia.
Fonte: Wiley Advanced