Células-zumbi não tem nada relacionado a alguma nova série, não… Ocultas em nosso corpo, desde o fígado até o cérebro, estão umas coisinhas bem semelhantes a zumbis, conhecidas como células senescentes. Essas células pararam de se dividir e de funcionar como antes, mas resistem à morte e liberam uma mistura tóxica de sinais biológicos que podem prejudicar a cognição, aumentar a fragilidade e enfraquecer o sistema imunológico. O pior de tudo é que o número dessas células aumenta conforme envelhecemos.
Há mais de uma década, pesquisadores vêm tentando descobrir se conseguem selecionar e destruir essas células com uma variedade de medicamentos. Em um estudo importante, publicado em 2015, uma equipe da Mayo Clinic em Rochester, Minnesota, e do Scripps Research Institute em Jupiter, Flórida, descobriu que uma combinação de dois compostos, chamados dasatinibe (um fármaco antineoplásico indicado para tratamento de um tipo de leucemia) e quercetina (um flavonoide abundante em frutas e vegetais com vários benefícios para saúde), eliminou células senescentes em camundongos idosos. O tratamento fez com que os camundongos ficassem menos frágeis, rejuvenescendo seus corações e aumentando sua resistência física. Essa descoberta abriu as portas para uma nova área da medicina chamada senolíticos.
Por que “células-zumbi”?
Em 1961, os biólogos americanos Leonard Hayflick e Paul Moorhead descreveramas células senescentes pela primeira vez, ao observarem em laboratório que células humanas não se dividem mais do que 50 vezes antes de morrerem ou entrarem no estado de senescência celular. No entanto, a observação em laboratório apontou que esse processo pode acontecer em semanas, mas os pesquisadores não sabem quanto tempo isso leva no corpo humano, quanto tempo essas células duram e se todos os tipos podem se tornar senescentes.
A senescência não decorre só do limite de divisão celular, podendo surgir devido a outros fatores, como lesões físicas, desnutrição ou danos no DNA causados por luz UV. Inicialmente, os cientistas pensavam que a senescência servia para evitar que células danificadas se replicassem descontroladamente, causando câncer, mas isso parece não ser toda a história. Pode ser que seja verdade até certo ponto, mas não explicava por que permaneciam no corpo em vez de simplesmente morrerem, como ocorre no processo controlado de morte celular conhecido como apoptose, um processo ordenanado, conhecido como “suicídio celular”.
Com o tempo, os pesquisadores descobriram que as células senescentes evitavam a apoptose para desempenhar uma função específica, liberando uma mistura potente de sinais inflamatórios que acionam o sistema imunológico para eliminar células danificadas, ajudando a abrir espaço para que tecidos danificados se regenerem e se reparem.
Esse processo funciona, mas conforme nossa idade vai avançando, nosso sistema sistema imunológico enfraquece, levando ao acúmulo de células senescentes que provocam inflamação excessiva. Esse acúmulo e a inflamação relacionada à idade estão correlacionadas com muitas doenças, incluindo osteoporose, diabetes, doenças cardíacas, doenças renais e Alzheimer. Para muitos cientistas da área, essa constatação motivou a busca por entender o que as células estão fazendo e assim descobrir como eliminá-las.
Nos últimos anos, os esforços se intensificaram. Em estudos recentes com animais e ensaios clínicos em humanos, a pesquisa ganhou novo impulso. Em camundongos e macacos, ferramentas genéticas estão sendo usadas para reprogramar e matar células senescentes. Outros pesquisadores estão desenvolvendo células imunológicas senolíticas. Atualmente, cerca de 20 ensaios clínicos estão em andamento, testando novos medicamentos e outros já existentes que podem ter propriedades senolíticas, na esperança de combater doenças relacionadas ao envelhecimento, como Alzheimer, doenças pulmonares e doenças renais crônicas.
Anirvan Ghosh, diretor executivo da Unity Biotechnology, uma empresa em South San Francisco, Califórnia, que está desenvolvendo senolíticos, expressa otimismo: “Estou convencido de que os senolíticos terão um impacto na clínica. Acho que a questão realmente é como será o agente e qual será o primeiro medicamento aprovado.“
Células que precisam morrer…
Um ponto chave na estratégia dos senolíticos envolve o desenvolvimento de medicamentos que impedem as células senescentes de resistirem à apoptose. Normalmente, elas sobrevivem produzindo proteínas anti-morte. Portanto, bloqueando essas proteínas com medicamentos, é possível forçá-las a sucumbirem à morte.
Em um estudo publicado em fevereiro, Ghosh e seus colegas descobriram que as células senescentes eram mais abundantes nas retinas de camundongos diabéticos do que nas de camundongos saudáveis, sugerindo que nos vasos sanguíneos dos olhos, elas poderiam contribuir para a perda de visão relacionada ao diabetes.
Conhecida como edema macular diabético, essa condição acontece em razão de níveis elevados de açúcar no sangue que tornam vasos sanguíneos delicados mais permeáveis, principalmente em indivíduos mais velhos. Esta é uma das principais causas de cegueira no mundo, com uma estimativa de que 27 milhões de adultos sejam afetados pela condição. O tratamento padrão, que utiliza um medicamento contra o câncer originalmente desenvolvido para desacelerar o crescimento dos vasos sanguíneos, gera benefícios para somente cerca de metade dos pacientes.
Foi desenvolvido um medicamento (chamado foselutoclax) que bloqueia a ação da proteína anti-morte chave abundante em células senescentes (chamada proteína BCL-xL). Quando o medicamento foi injetado nos olhos de camundongos diabéticos, ele matou as células senescentes nos vasos sanguíneos que alimentam a retina, mas não as saudáveis, o que sugere a buscada morte seletiva.
O medicamento reduziu a permeabilidade dos vasos sanguíneos da retina em camundongos diabéticos em cerca de 50%. Além disso, os camundongos tratados apresentaram melhor desempenho em testes de visão em comparação com os do grupo de controle. Em um ensaio de fase II, pesquisadores administraram uma única injeção de foselutoclax nos olhos de cerca de 30 seres humanos, e 11 meses depois, aqueles tratados com o senolítico conseguiram ler, em média, 5,6 letras a mais em uma tabela oftalmológica em comparação com os participantes que receberam um tratamento placebo.
A equipe espera publicar os resultados ainda este ano, mas, enquanto isso, a Unity, que já apresenta esses resultados promissores, está conduzindo outro ensaio de fase II que comparará o senolítico com a terapia padrão, mas participantes já manifestaram melhoria na qualidade de visa e percepção de cores, por exemplo.
Sundeep Khosla, que estuda o envelhecimento na Mayo Clinic, aposta que dentro dos próximos 5 anos esse tratamento poderá estar sendo utilizado na clínica para o edema macular diabético.
Alguns cientistas estão testando medicamentos que já existem para desenvolver os ansiolíticos, em vez de começar esse desenvolvimento do zero, incluindo dasatinibe, aprovado nos Estados Unidos como terapia contra o câncer, e dois produtos químicos derivados de plantas, quercetina e fisetina. Estes últimos são vendidos como suplementos para reduzir a inflamação, melhorar a saúde do cérebro e reduzir o risco de doenças relacionadas à idade. Essas alegações baseiam-se em estudos com roedores nos quais os medicamentos demonstraram eliminar células senescentes e reduzir a inflamação.
Em um estudo de 2019, pesquisadores usaram dasatinibe e quercetina para remover células senescentes do cérebro em um modelo de camundongo para a doença de Alzheimer. Os camundongos tratados com os senolíticos apresentaram redução da inflamação cerebral e melhora na memória em comparação com os animais que receberam um placebo. Motivada por esses dados promissores em camundongos, Miranda Orr, da Wake Forest University School of Medicine em Winston-Salem, Carolina do Norte, e seus colegas conduziram no ano passado o primeiro ensaio de segurança da combinação de medicamentos em pessoas com Alzheimer em estágio inicial.
A equipe de Orr administrou dasatinibe e quercetina de forma intermitente a cinco pessoas por três meses, e descobriram que os medicamentos eram seguros e que o dasatinibe estava presente em amostras de líquido cefalorraquidiano, um fluido que circula pelo cérebro e pela medula espinhal, sugerindo que ele pode atravessar para o cérebro. Por outro lado, a quercetina não foi detectada no líquido cerebral, mas Orr suspeita que ela tenha atingido o cérebro e sido rapidamente degradada. A equipe está agora conduzindo um ensaio maior, cujos resultados devem ser divulgados em 2025, para acompanhar durante 9 meses a cognição de pessoas com e sem Alzheimer após tomarem placebo ou a combinação de medicamentos.
Ainda este ano, devem surgir novos dados do maior ensaio humano de desatinibe e quercitina até agora, que investigou o efeito dos ansiolíticos nos ossos de mulheres saudáveis. Esta pesquisa ainda está sendo revisada por pares.
O potencial do sistema imunológico
O sistema imunológico pode contribuir muito para eliminar essas células-zumbi do corpo. Uma abordagem está concentrada na ideia de usar células imunológicas geneticamente modificadas, chamadas CAR T (receptor de antígeno quimérico T), que podem identificar e matar células específicas com base nas moléculas exibidas em sua superfície. Atualmente, as terapias com célulasCAR T são aprovadas para o tratamento de vários tipos de câncer no sangue.
E olha que legal, além dos tratamentos para o câncer, células CAR T também podem se apresentar como uma opção promissora para doenças autoimunes. Clica aqui para ler!
No início deste ano, junto a outros pesquisadores, a bióloga celular Corina Amor, do Cold Spring Harbor Laboratory em Nova York, identificou um marcador de proteína chamado uPAR nas células senescentes nos fígados, tecidos adiposos e pâncreas de camundongos mais velhos, e criaram outras, do tipo CAR T, que foram colocadas no sangue dos animais para matar as senescentes portadoras do marcador uPAR, e notou-se uma redução na proporção destas no fígado, pâncreas e tecidos adiposos.
Ao observarem os níveis de açúcar no sangue reduzidos, a equipe descobriu que os camundongos idosos tratados com as células CAR T uPAR apresentaram melhora na saúde metabólica, e correram mais rápido e por mais tempo do que os camundongos tratados com células T não modificadas ou com células T que o alvo não é encontrado em ratos. Nenhum dos tatos tratados com as CAR T senolíticas mostrou sinais de toxicidade.
Em ratos jovens, as CAR T senolíticas conseguiram prevenir os declínios comuns da idade na regulação do açúcar no sangue e na capacidade física. Além disso, um estudo preliminar divulgado em março apontou que essas células poderiam revitalizar os intestinos de ratos mais velhos.
Contudo, a segurança dessa terapia ainda precisa de uma avaliação mais robusta, segundo Amor. Seria importante também desenvolver um mecanismo de desativação para esses tratamentos com base celulae, para casos de complicações. Há registros raros de células CAR T, utilizadas no tratamento de câncer, que acabaram desenvolvendo características cancerígenas.
A equipe de Amor está trabalhando para implementar esses mecanismos de segurança em breve, modificando as células CAR T senolíticas para incluir um gene que provoque a morte celular, que seria ativável por um medicamento específico. Porém, Robin Mansukhani, CEO da Deciduous Therapeutics em San Francisco, destaca que produzir essas terapias têm um custo bastante alto.
Isso levou Mansukhani a investir neste momento em uma estratégia mais econômica, que utiliza um tipo diferente de célula imunológica, a célula T assassina natural. Em 2021, sua equipe demonstrou que estas células têm um efeito senolítico, especialmente eficaz em ratos mais velhos e também que certos medicamentos ativam estas células imunológicas, ajudando a eliminar células senescentes e reduzir a formação de cicatrizes nos pulmões dos animais, melhorando sua sobrevida.
Os pesquisadores desenvolveram uma série de medicamentos que potencializam as células T assassinas naturais, visando tratar doenças como diabetes e problemas pulmonares, e este ano testes de segurança serão realizados em cães e primatas não humanos, com ensaios clínicos previstos para iniciar nos próximos dois anos. Essa abordagem utiliza moléculas menores e mais simples de produzir do que as envolvidas nas terapias de células CAR T.
Terapia gênica
Outras equipes estão utilizando a terapia gênica para eliminar células senescentes, encapsulando um gene que codifica uma proteína letal chamada caspase-9 em cápsulas de gordura, revestidas com proteínas derivadas de um vírus. Em ratos e macacos, essas cápsulas foram eficazes em entregar o gene para células nos pulmões, coração, fígado, baço e rins.
Nesta abordagem, as células saudáveis são poupadas porque o gene é ativado apenas nas células senescentes que possuem altos níveis de uma das duas proteínas chamadas p16 e p53, explica Matthew Scholz, diretor executivo da Oisín Biotechnologies em Seattle, Washington, que está desenvolvendo a terapia gênica. Como um mecanismo adicional de segurança, a proteína letal inicia a morte celular somente após o animal receber uma dose muito baixa de um medicamento chamado rapamicina.
Ao longo de quatro meses, uma dose mensal da terapia reduziu a fragilidade e as taxas de câncer em ratos idosos sem causar efeitos colaterais nocivos. O grupo de comparação envolveu ratos que receberam um placebo e baixa dose de rapamicina.
No entanto, uma limitação importante dessa abordagem é que ela depende de apenas um ou dois marcadores proteicos. Embora o p16 seja amplamente utilizado como um marcador de senescência, a identificação definitiva de células nesse estado geralmente requer um painel de vários marcadores. Isso significa que, ao direcionar apenas para os marcadores p16 e p53, a terapia gênica provavelmente elimina algumas células saudáveis que possuem esses marcadores e não consegue matar algumas das células-zumbi que não os possuem.
Em busca de melhores marcadores para identificar células-zumbi
Existe mais de um tipo de células senescentes, por isso selecionar este tipo de célula é um problema em todas as abordagens senolíticas, e ainda há um longo caminho para identificar biomarcadores eficientes para atingir precisamente as células-zumbi.
Há um grande esforço colaborativo chamado Cellular Senescence Network (SenNet), envolvendo mais de 200 pesquisadores, que visa produzir mapas detalhados das células senescentes ao longo da vida de humanos e ratos, utilizando aprendizado de máquina para aprimorar as definições dos marcadores de células cerebrais senescentes e, em seguida, usá-los para mapear como essas células mudam com a idade e durante a demência.
O desenvolvimento de melhores marcadores de células senescentes resultará em senolíticos mais eficazes, que um dia poderão prevenir ou tratar doenças relacionadas ao envelhecimento.
Integrar o sistema imunológico na batalha contra as células-zumbi está revelando novas possibilidades terapêuticas. A terapia gênica também está ampliando ainda mais o horizonte dessas possibilidades, prometendo tratamentos que podem não apenas retardar, mas também reverter alguns aspectos do envelhecimento.
Os avanços são promissores, e a pesquisa sobre células senescentes e senolíticos continua traz esperança de uma nova era na medicina regenerativa.
Fonte: Nature