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O decaimento de partículas que quebrou a teoria da simetria do universo, há 75 anos: Conheça a mulher responsável pela descoberta

A física de partículas sofreu uma revolução em 1948, com um fenômeno inesperado capturado em uma lâmina fotográfica em um laboratório de física em Bristol, Reino Unido. A protagonista dessa história foi uma jovem doutoranda em física de 22 anos, Rosemary Brown, conhecida posteriormente como Fowler, –seu sobrenome de casada –,  hoje com 97 anos. Neste artigo vamos te contar sobre como sua descoberta desafiou as leis da simetria do universo e abriu novos horizontes no entendimento da física de partículas.

Naquela época, antes do advento dos aceleradores de partículas, os cientistas dependiam de emulsões fotográficas para estudar as partículas de alta energia. Essas emulsões eram expostas aos raios cósmicos que atravessam o espaço e bombardeiam continuamente a Terra. Logo após a Segunda Guerra Mundial, esta era uma época de ouro para a descoberta de partículas, e os cientistas estavam apenas começando a compreender a complexidade do mundo subatômico, que até então incluía apenas o elétron e o próton. Foi na década de 1930 que se testemunhou a descoberta do nêutron, do múon (uma versão mais pesada do elétron) e do pósitron, a primeira partícula de antimatéria.

Entretanto, foi em 1947 que Cecil Powell, orientador de Brown, na Universidade de Bristol, confirmou a existência do píon, abrindo as portas para um novo grupo de partículas: os mésons, que foram previstos em 1934 pelo físico japonês Hideki Yukawa como portadores da força nuclear forte, uma das quatro forças fundamentais da natureza. Hoje sabemos que os mésons são compostos de quarks, cujas interações através da troca de glúons formam a base dessa força na cromodinâmica quântica.

O enredo se torna ainda mais intrigante com a descoberta, em dezembro de 1947, por George Rochester e Clifford Butler, da Universidade de Manchester, do theta zero (ϴ0), um méson neutro que se decompõe em píons. Foi então que Rosemary Brown, trabalhando no laboratório de Powell, fez uma observação surpreendente e diferenciada. Ao analisar uma placa de emulsão fotográfica, ela identificou um padrão de trilhas de partículas que não se encaixava no que já era conhecido. Essa placa, proveniente de experimentos realizados no laboratório de alta altitude em Jungfraujoch, na Suíça, revelou uma partícula com a mesma massa do ϴ0, mas com um comportamento de decaimento único: ao invés de se desintegrar em dois píons como o ϴ0, ela se desintegrava em três.

Essa discrepância, aparentemente pequena, tinha implicações profundas. A física até então aceitava um universo simétrico em suas leis fundamentais, mas o que a jovem física tinha em mãos era uma evidência direta de que essa simetria poderia ser quebrada. A partícula, que ela identificou como ‘tau’ (também conhecida como táuon), era um indício claro de que os modelos teóricos existentes precisavam de revisão.

Este achado não foi apenas uma confirmação de mais uma partícula subatômica, mas um ponto de virada que desafiou a compreensão estabelecida sobre as simetrias na natureza. Os físicos levaram quase uma década para desvendar completamente as implicações desse achado. A descoberta de Brown foi a peça que faltava para completar um quebra-cabeça complexo e maravilhoso sobre as forças fundamentais que regem nosso universo.

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Rachadura no espelho: A resolução do enigma Tau-Teta

Após a descoberta pioneira de Rosemary Fowler, o campo da física de partículas entrou em um período de investigação intensa e revelações surpreendentes. A pesquisa meticulosa e a publicação acelerada de três artigos, com Fowler como primeira autora, marcaram o início de uma jornada científica extraordinária.

O cerne dessa jornada era o conceito de paridade, uma simetria fundamental da natureza. De forma simples, a paridade sugere que a imagem refletida em um espelho de um processo físico deve ocorrer tão naturalmente quanto o próprio processo. Na física de partículas, isso se traduz em um número quântico que descreve o comportamento de uma partícula quando suas coordenadas espaciais são invertidas. A descoberta de Fowler desafiava essa noção: enquanto o méson tau se decompunha em três píons com paridade -1, o theta zero (ϴ0) se decompunha em dois píons com paridade +1. Se a paridade fosse uma lei imutável da natureza, essas duas partículas não poderiam ser idênticas.

O mistério se aprofundou com pesquisas subsequentes. Experimentos em câmaras de nuvens e voos de balões de alta altitude buscavam evidências adicionais da decadência do méson tau de Fowler. Em 1955, o Bevatron, um acelerador de partículas gigantesco na Lawrence Berkeley National Laboratory, contribuiu com mais 35 eventos. A essa altura, os físicos já haviam adotado uma nova nomenclatura: os mésons iniciais foram chamados de K mesons ou kaons, enquanto theta e tau passaram a referir-se a modos específicos de decaimento.

A virada dramática veio em 1956, durante uma conferência em Rochester, Nova York. Lá, físicos como Murray Gell-Mann e Richard Feynman debateram intensamente sobre os kaons e outras partículas “estranhas”. Foi nesse encontro que surgiu a hipótese revolucionária: e se a paridade não fosse conservada nas interações nucleares fracas, responsáveis pelos decaimentos dos kaons?

Tsung-Dao Lee e Chen-Ning Yang, presentes na conferência, propuseram naquele mês de outubro que a paridade poderia de fato ser violada. A ideia, inicialmente recebida com ceticismo, desafiava uma crença de longa data na física. Richard Feynman, inclusive, chegou a apostar contra a possibilidade de violação da paridade, mas o cenário estava prestes a mudar.

A confirmação experimental dessa teoria revolucionária veio pelas mãos da física Chien-Shiung Wu. Em 1956, em um experimento conduzido no National Bureau of Standards em Washington DC, Wu demonstrou conclusivamente que a paridade não era conservada na decadência beta do cobalto-60, um processo também regido pela força nuclear fraca. Esse resultado foi um golpe no entendimento clássico de simetria na natureza e resolveu o enigma tau-teta: os dois tipos de kaon eram, na verdade, a mesma partícula.

Mas as descobertas não pararam por aí. O experimento de Wu também provou que outra simetria, a conjugação de carga (C), era quebrada pela natureza, e isso abriu caminho para uma revisão das visões sobre outras simetrias presumidas na natureza. Em 1964, foi demonstrado que a conservação da combinação de carga e paridade (CP) também era violada, mais uma vez nos decaimentos dos kaons.

Esses avanços levaram à ideia de quebra espontânea de simetria na física de partículas e, posteriormente, à teoria da quebra de simetria eletrofraca. Essa teoria explica como as forças nuclear fraca e eletromagnética, que parecem distintas em nossas condições energéticas cotidianas, são unificadas em altas energias, como as do início do universo. Foi essa linha de pensamento que sugeriu a existência do bóson de Higgs, uma partícula finalmente descoberta em 2012 no Grande Colisor de Hádrons (LHC), no CERN, perto de Genebra, Suíça.

Hoje, continuamos a desvendar os mistérios do universo através de estudos sobre as assimetrias nos decaimentos de kaons e outras partículas, tanto no CERN quanto em outros laboratórios de física de partículas ao redor do mundo. Essas investigações podem ser a chave para entender fenômenos ainda não explicados pelo modelo padrão da física de partículas. A cada nova descoberta, somos lembrados do impacto duradouro da descoberta de Fowler e de como ela contribuiu para remodelar nosso entendimento do universo.

O legado para física de partículas: O reconhecimento de Rosemary Fowler

Reprodução: Nature – Em 1948, Rosemary Brown (atrás à esquerda, ao lado do pilar) era uma das poucas mulheres físicas em Bristol. Crédito: Arquivos da Escola de Física/Universidade de Bristol

A história de Rosemary Fowler, e o impacto de sua descoberta na física de partículas, nos conduz a um aspecto muitas vezes negligenciado na ciência: o reconhecimento das contribuições femininas. No ambiente predominantemente masculino dos departamentos de física da época, Fowler destacou-se não apenas pela sua descoberta seminal, mas também pela sua coragem e determinação em um campo onde a paridade de gênero era visivelmente violada.

Em meio a este cenário, a figura dos “scanners” ganha um significado especial. Esses scanners, em sua maioria sendo profissionais mulheres, desempenharam um papel crucial na análise de dados fotográficos em busca de fenômenos incomuns ou interessantes para análise posterior por físicos. Os scanners foram fundamentais para o avanço das pesquisas, embora frequentemente permanecessem nas sombras do reconhecimento acadêmico.

Mas Fowler não era uma scanner, ela enfrentou seus próprios desafios ao ser uma das poucas mulheres a receber o convite para fazer seu doutorado em física. Sua decisão de deixar a física para se dedicar à família, após um início de carreira brilhante, reflete as complexas escolhas enfrentadas pelas mulheres na ciência, especialmente naquela época. Essa escolha pragmática, embora compreensível sob as circunstâncias do pós-guerra, destaca as barreiras adicionais que as mulheres cientistas muitas vezes enfrentam.

A história de Fowler é emblemática do chamado “efeito Matilda“, um fenômeno no qual as contribuições de cientistas mulheres são frequentemente negligenciadas ou atribuídas a seus colegas homens. Este padrão de omissão e atribuição inadequada não se limita a Fowler, mas é uma narrativa recorrente na história da ciência. Marietta Blau, que desenvolveu a técnica de emulsão usada na descoberta do píon, e Bibha Choudhuri, cujo trabalho também apoiou a evidência do píon, são exemplos notáveis de cientistas mulheres cujas contribuições fundamentais foram ofuscadas.

O caso de Chien-Shiung Wu é particularmente ilustrativo. Sua experimentação decisiva provou a violação da paridade, um conceito teórico proposto por Lee e Yang, que receberam o Prêmio Nobel por suas ideias, enquanto Wu foi inexplicavelmente deixada de fora deste reconhecimento.

Ao refletir sobre a jornada de Fowler e suas contemporâneas, percebemos a importância de reexaminar e corrigir os registros históricos da ciência, – e isso vale não só para a física de partículas. Reconhecer plenamente as contribuições dessas cientistas não é apenas uma questão de justiça histórica, mas também uma forma de inspirar gerações futuras de cientistas, independentemente de gênero.

Agora, 75 anos após a descoberta de Fowler, é oportuno e necessário reafirmar seu papel na física de partículas. Sua história, juntamente com a de muitas outras cientistas que permaneceram nas sombras, destaca a necessidade de um reconhecimento mais equitativo no mundo da ciência. Enquanto continuamos a explorar os mistérios do universo, devemos também nos esforçar para garantir que todas as vozes e mentes que contribuem para essa jornada sejam devidamente reconhecidas e celebradas.

Fonte: Nature

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