Como eram as estruturas sociais no passado? Vamos fazer uma viagem no tempo, lançando um olhar sobre a História, lá em torno de 2200 a.C., na fascinante Península Ibérica, onde o misterioso proto-estado de El Argar se erguia em poder e influência.
Sob o solo de um cidadela no topo da montanha, chamada La Almoloya, um jarro funerário de quase um metro de diâmetro continha um quebra cabeça. Trata-se de um registro silencioso de tradições e segredos antigos, abrigando a história de uma mulher de aproximadamente 20 anos, adornada com prata brilhante, e um homem de meia-idade, cuja riqueza não correspondia à dela. Provavelmente dois membros de El Argar, da Idade do Bronze.
A descoberta inicial, há mais de um século, levou os arqueólogos a acreditar em contos românticos de casais reais eternamente entrelaçados no descanso final, mas com o passar do tempo, investigadores posteriores concluíram que se tratava que revelava distinções de riqueza e poder entre os gêneros. Seriam estas mulheres, envoltas em prata, as verdadeiras protagonistas de uma época matriarcal, onde os homens, filhos e netos, eram adicionados posteriormente aos túmulos?
No entanto, em 2019, geneticistas e arqueólogos se uniram, lançando luz sobre o DNA extraído deste casal de La Almoloya e de 66 outras pessoas enterradas, revelando conexões inesperadas e complexas. Ao invés de parentes distantes, os pares eram, na verdade, parceiros de vida, com crianças enterradas por perto, uma menina, inclusive, era filha de um casal enterrado perto do palácio.
Essas descobertas foram desvendando segredos enterrados de mulheres da elite e suas conexões, nos dando um vislumbre de uma civilização passada, sobre como viviam, amavam e se relacionavam as pessoas em El Argar.
Avançando nos estudos, ficou então evidente que as mulheres da elite não eram originárias de La Almoloya, parece que elas vieram de outros assentamentos elevados, talvez de regiões montanhosas igualmente prestigiosas. O curioso é que essas mulheres, estranhamente não relacionadas a outras pessoas enterradas no mesmo local, escolheram homens locais como parceiros – homens que, por coincidência, eram parentes entre si. Será que esse era um plano para unificar os fragmentados assentamentos de El Argar em um estado unificado?
À medida que os segredos do DNA são desvendados, um padrão emerge: as mulheres eram, de fato, os pilares de suas redes sociais. Em um mundo onde acreditávamos que as narrativas eram dominadas por homens, as mulheres de El Argar estavam claramente dominando, não sendo apenas figurantes, mas as verdadeiras protagonistas da cultura da época.
A revolução sobre o estudo das estruturas sociais
O estudo em La Almoloya sobre o DNA antigo está passando por uma revolução. Antes, os cientistas se concentravam em grandes populações, tentando traçar conexões genéticas amplas, mas, graças aos avanços tecnológicos e aos custos em queda da sequenciação de DNA, o foco mudou.
Agora, estamos nos aprofundando em conexões pessoais e íntimas, trazendo à tona as dinâmicas de comunidades antigas. Esse tipo de estudo está se tornando tão acessível que pesquisadores estão analisando cemitérios inteiros.
Mais do que saber quem eram nossos ancestrais, estamos entendendo sobre aspectos sociais, como eles viviam e se relacionavam, através dos já descobertos padrões de casamento dos nômades da Idade do Bronze e rastreamento de milhares de descendentes de mulheres escravizadas enterradas há dois séculos.
E ainda tem mais: Estudos estão prestes a revelar árvores genealógicas que abrangem dez gerações, mostrando não apenas irmãos ou pais e filhos, mas primos distantes e ligações muito mais complexas. Em uma revelação recente, pesquisadores identificaram laços de parentesco entre pessoas de uma ilha polinésia remota, mostrando que práticas sociais milenares mudaram com a chegada de novos habitantes.
Segundo Catherine Frieman, arqueóloga da Universidade Nacional da Austrália, agora estamos em um ponto em que “podemos realmente fazer perguntas arqueológicas sobre esses dados“, como as pessoas organizavam sociedades e veneravam ancestrais.
Zuzana Hofmanová, geneticista do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology EVA, que está atuando na reconstrução das estruturas sociais da Morávia medieval usando ossos de pessoas enterradas sob igrejas tchecas e eslovacas, ressalta que o campo da pesquisa “está realmente florescendo” e que estamos apenas começando a arranhar a superfície de um mundo antigo repleto de histórias esperando para serem contadas.
A linha do tempo das descobertas
Após a publicação do primeiro genoma humano antigo completo em 2010, a pesquisa em DNA antigo abriu novas janelas para o entendimento das migrações e deslocamentos populacionais antigos.
Naquela época, devido aos altos custos envolvidos, os pesquisadores geralmente se limitavam a utilizar como amostra um ou dois indivíduos por local, centrando-se em padrões amplos de DNA. Isso, por vezes, levava a narrativas biológicas que, embora reveladoras, deixavam os arqueólogos, ansiosos por análises mais detalhadas sobre estruturas sociais e culturais, um tanto quanto à margem.
No entanto, a última década testemunhou uma revolução na sequenciação de DNA. Os custos desabaram, e com eles vieram informações mais ricas por amostra. Hoje, a análise de DNA é tão acessível quanto a datação por radiocarbono.
A datação por radiocarbono é uma técnica usada para determinar a idade de um objeto contendo matéria orgânica, medindo a quantidade de carbono-14 neles presente. Esse método é baseado no decaimento radioativo do isótopo carbono-14, que é formado na atmosfera e absorvido por organismos vivos. Quando o organismo morre, o carbono-14 começa a decair a uma taxa conhecida, permitindo que os cientistas estimem o tempo que se passou desde a morte do organismo.
Os custos mais acessíveis da análise do DNA permitiu superar as informações conseguidas pela datação de radiocarbono, tornando possível que os pesquisadores identificassem relações familiares próximas, oferecendo uma cronologia detalhada dos sítios de enterro.
Curiosamente, o que antes era considerado “ruído” em estudos de DNA – a informação detalhada da família – começou a ganhar destaque. Inicialmente, geneticistas, como Iñigo Olalde, geneticista da Universidade do País Basco, viam o DNA familiar como algo repetitivo e estavam mais interessados em indivíduos não relacionados para estudos populacionais. Mas, à medida que a tecnologia evoluía, a perspectiva mudava e o DNA revelava-se capaz de traçar famílias inteiras através de várias gerações. Esta riqueza de informações atraía arqueólogos, que viam potencial em decifrar a parentela pré-histórica e as estruturas sociais.
Um caso ilustrativo dessa revolução é o monte Hazleton North Barrow. Construído há 5700 anos, este monte, de 50 metros de comprimento, continha dezenas de esqueletos. Durante muito tempo, os arqueólogos debateram se montes como o Hazleton eram criptas familiares ou santuários comunitários. A análise do DNA lançou luz ao caso apontando que, de fato, se tratava de um assunto de família. A tumba revelou 27 parentes que abrangiam cinco gerações.
Curiosamente, a grande maioria dos homens na tumba em Hazleton descendia de um único homem. E as mulheres adultas presentes não estavam relacionadas entre si. Isso sugere um padrão em que as mulheres eram enterradas com a família de seus cônjuges, não com seus pais – uma forte indicação de que esses britânicos neolíticos tinham um sistema patrilocal.
O sistema patrilocal refere-se a uma prática social em que a esposa se muda para viver na residência ou comunidade do marido após o casamento. Esse padrão é frequentemente associado a sociedades patriarcais, onde a linhagem, a herança e o status social são predominantemente determinados pelo lado masculino da família, sendo comum que os filhos permaneçam e herdem a propriedade de seus pais, enquanto as filhas se mudam para as residências de seus maridos.
O fundador da família tinha múltiplas parceiras, vindas de diferentes gerações, e as mulheres em Hazleton, embora não relacionadas entre si, desempenharam um papel crucial na estruturação das famílias extensas.
Ao longo de um século ou mais, os enterros foram organizados de acordo com a linhagem feminina, o que destaca a importância das mulheres naquela sociedade, mesmo que seja evidente que a linhagem masculina unificava a tumba, enquanto os ancestrais femininos determinavam a subdivisão da comunidade.
O Túmulo de Hazleton North oferece um vislumbre fascinante da dinâmica familiar de um clã neolítico, seu fundador era um homem, cuja linhagem ostenta descendentes de relações com quatro parceiras femininas distintas. Enquanto o túmulo servia principalmente como local de descanso final para seus descendentes masculinos e seus jovens filhos, independentemente do gênero, uma ausência significativa de filhas adultas sugere que seus locais de sepultamento podem estar localizados em outro lugar.
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Estruturas sociais da França antiga
Outro sítio neolítico de Gurgy ‘les Noisats’ na França, uma outra descoberta arqueológica significativa, anterior a Hazleton por um milênio, presenteou os pesquisadores com as sequências de DNA de quase 100 indivíduos. Uma revelação marcante deste sítio é a forte evidência de patrilocalidade. Aqui, uma linhagem impressionante se estendeu por sete gerações, com dezenas de indivíduos rastreando suas raízes até um único homem.
Mas ainda é cedo para ter respostas definitivas. A consistência da evidência de patrilocalidade de locais como Gurgy tem sido surpreendente, mas especialistas insistem na necessidade de se ter cautela ao tirar conclusões amplas com base em um conjunto limitado de dados.
Outra observação intrigante de Gurgy foi a notável falta de meio-irmãos, o que levanta especulações sobre as normas sociais da época, sugerindo potenciais ritos funerários ou talvez até mesmo a prevalência de relações estritamente monogâmicas.
O estudo de Gurgy também testemunhou a aplicação de uma técnica inovadora de DNA, a análise “identical by descent” (IBD – “idêntica por descendência” em tradução livre), familiar para muitos devido ao seu uso em testes comerciais de ancestralidade. Esta análise revela conexões entre parentes distantes, e em contraste com as análises tradicionais de DNA antigo, que normalmente identificam relações com até dois graus de separação, o IBD aprofunda-se mais, conectando primos distantes e até bisavós.
Não são apenas os homens cujas histórias estão sendo desenterradas, também as mulheres da comunidade patrilocal de Gurgy desempenharam papéis fundamentais que transcenderam gerações. A análise IBD desvendou casos em que uma mulher poderia deixar a comunidade, mas sua linhagem faria um retorno em gerações subsequentes. Tais padrões sublinham a possibilidade de que, mesmo se as mulheres se mudassem, elas mantinham fortes laços com seus locais de nascimento, desempenhando papéis cruciais em uma rede regional mais ampla.
Conexões genômicas do passado
O avanço da pesquisa genômica tem sido monumental e, até novembro de 2022, os geneticistas já haviam reunido dados genômicos completos de mais de 10.000 indivíduos. Dada a rapidez com que a tecnologia e a metodologia estão progredindo, é razoável esperar que esse número cresça significativamente nos próximos anos.
O uso da técnica IBD para identificar relações distantes de parentesco tem sido particularmente revelador. Recentemente, um trabalho de Harald Ringbauer do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology (EVA), destacou a incrível descoberta de segundos primos que viveram há 5.000 anos e foram enterrados a impressionantes 1.400 quilômetros de distância — um na Rússia meridional e o outro na Mongólia central. Ambos pertenciam à cultura Afanasievo, uma variante oriental das pessoas da estepe Yamnaya, que tiveram uma contribuição genética significativa para as populações europeias da época. Este exemplo destaca não apenas os laços familiares distantes, mas também o nível notável de mobilidade que ocorreu em um curto período de tempo.
A crescente base de dados genômicos do passado promete transformar nossa compreensão das conexões ancestrais. Ringbauer vislumbra uma espécie de “23andMe” para o passado distante, onde as ligações genéticas entre pessoas pré-históricas de diferentes épocas e locais poderiam ser facilmente identificadas e analisadas. Imagine adicionar um estudo a essa base de dados e instantaneamente identificar relações distantes, como encontrar um segundo primo em uma cultura e período de tempo completamente diferentes.
No entanto, a pesquisa também nos lembra de considerar a complexidade das relações humanas. Como Joanna Bruck, arqueóloga da University College Dublin, aponta, o parentesco não é determinado apenas geneticamente, em muitos aspectos trata-se de uma construção social. Estudos etnográficos de sociedades contemporâneas fornecem inúmeros exemplos em que a paternidade biológica é secundária a outras formas de relacionamento. Isso inclui sistemas matrilineares e comunidades onde a paternidade é determinada por trocas, como a transferência de gado para a família de uma mulher.
O trabalho interdisciplinar entre genética e arqueologia é vital para entender essas complexidades. Um estudo de 2015 no Vale do Lech, na Alemanha, por exemplo, mostrou padrões de patrilocalidade. Contudo, muitos de lá incluíam tanto indivíduos biologicamente relacionados quanto aqueles sem vínculos genéticos aparentes com os demais sepultados. Os artefatos e a cultura material ofereceram uma janela para entender a dicotomia dessas estruturas sociais: as pessoas não relacionadas geralmente possuíam menos bens em seus túmulos, sugerindo que poderiam ser trabalhadores, servos ou até escravizados, associados a famílias mais ricas e estabelecidas.
A pesquisa também revelou práticas sociais surpreendentes, como a alta incidência de casamentos entre primos de primeiro grau nas ilhas do Egeu. Enquanto tal prática era mais comum em ilhas isoladas, sua presença em toda a região sugere uma escolha sociocultural, talvez motivada pela necessidade de manter terras agrícolas valiosas, como vinhas e olivais, dentro da família.
No futuro, os paleogeneticistas esperam expandir suas pesquisas para além da Europa, beneficiando-se das condições favoráveis de preservação e financiamento. Esta expansão não só ajudará a desvendar os mistérios do passado, mas também poderá ter implicações na medicina moderna, traçando doenças hereditárias através das gerações.
Desde a primeira aplicação do DNA antigo por Wolfgang Haak, geneticista do EVA, em 2008, até os avanços de hoje, a capacidade do DNA de revelar detalhes sobre o passado tem se expandido rapidamente, tanto em aspectos biológicos quanto sobre as estruturas sociais.
As descobertas nos levam a questionar: quem eram nossos antigos ancestrais? Como eles se relacionavam uns com os outros e com o mundo ao seu redor? E como essas relações moldaram as sociedades de hoje? O avanço da ciência pela interseção da genética com a arqueologia e a antropologia promete continuar a desvendar esses mistérios!
Fonte: Science