Ao longo de nossa vida, é inevitável que cresçamos influenciados pela família, pelos amigos, pela sociedade, pela igreja, pelas normas sociais, por tudo que é apresentado a nós como “normal”. Isso não é nem bom nem ruim em si, e pode ser muito bom, afinal crescemos sem “conhecer” o mundo, de modo que precisamos ser “apresentados” a ele, e isso se dá aos poucos, inicialmente no núcleo familiar, e assim gradativamente. Para nos sentirmos seguros, vamos incorporando as opiniões e modos de ser e fazer dos que nos são próximos, aprendemos assim, e assim desenvolvemos um sentimento assegurador de pertencimento.
Mas ao mesmo tempo em que nossa inserção social, e nossa inserção na “vida adulta”, não poderia ser de outra maneira, também é verdade que muitas vezes, ainda que sem perceber ou inclusive na melhor das intenções, esses núcleos de proteção e inserção acabam por, digamos, nos influenciar em demasia, não no sentido de que deveria haver um limite prévio para a influência deles, mas no sentido de que muitas vezes aquela criança que absorvia tudo, ao ir crescendo, passa a não ser muito ouvida, reconhecida como um ser humano singular e único, com nosso temperamento, nossas ideias próprias, nossos gostos, apetites e desejos, que nem sempre – ou num certo sentido nunca exatamente – será idêntico ao de onde viemos, e nem sempre agradará totalmente aos que nos cercam.
Um núcleo saudável se orgulhará da autonomia de seu filho ou membro, e essas influências poderão continuar a ser boas nos aspectos em que de fato for, podendo ser utilizadas pela pessoa ao longo da vida.
Na prática, no entanto, e por melhor que forem as influências iniciais e estruturais, as diferenças entre a singularidade, o pensamento e as vivências de cada um e os valores sociais, nem sempre serem claramente percebidas pela própria pessoa, e o mais comum é que ela “pense” algo, mantenha alguma posição, muito mais porque representa a posição e o pensamento de seu grupo, do que porque expressa seu pensamento mais genuíno, mais livre.
Aos poucos nos damos conta de que em vários pontos pensávamos de uma certa maneira por hábito e herança, mais do que por sentirmos assim. Por vezes vemos que achávamos algo, digamos, contra nós mesmos, ou por preconceito, ou por crenças que não nos diziam respeito, por experiências que não são as nossas, por batalhas que não fazem tanto sentido assim para nós.
Então, a descoberta da filosofia é a descoberta de pensadores que buscaram entender as coisas em sua origem, em sua gênese, sem as camadas sociais de valores tomados como absolutos. É a estonteante descoberta de que é possível ver um mesmo ponto sob inúmeras perspectivas; de que a experiência da vida pode ser de liberdade de pensar, de que há várias maneiras de se conceber o certo e o errado, e que isso não é nem aleatório nem fixo, que podemos concordar e discordar, e entender por que concordamos ou discordamos, e entender a perspectiva do outro independente de concordar ou discordar dele.
Com a filosofia, um mundo se abre. Vemos que há premissas embutidas nas posições das pessoas, maneiras de se afetar e de viver. Ao invés de encontrarmos “a” verdade, o que de fato nada seria que a adesão a um dogma, encontramos verdades múltiplas, argumentos, maneiras de compreender os argumentos e os fatos, de não tomar partido e ao mesmo tempo de entender as posições, e, isso sim, entender com o qual concordamos ou nos afinamos, entendendo também a perspectiva do outro.
Em resumo, a filosofia se divide em áreas que estão implicadas umas nas outras, que seriam as seguintes. A ontologia (o “estudo do ser”) busca descrever e questionar a matéria e o pensamento, o corpo e a mente, o real, a vida. Ela serve de base para entender o funcionamento da mente, os modos de conhecimento, que é a epistemologia (o “estudo do conhecimento”, da mente e das ciências); e a epistemologia por sua vez se mistura com a teoria dos afetos e a psicologia, se entendemos que o pensar e o conhecer estão imbricados com as formas de sentir.
Daí decorrem maneiras de entender a ética, ou mesmo a moral em sua formação, abrangendo o estudo do comportamento humano, e se desdobrando no estudo do convívio social, coletivo e político, assim como da relação do homem com os outros seres. Por fim, a estética busca entender a relação do ser humano com a arte, a expressão artística, a criação e a ficção.
Absolutamente todo saber tem, consciente ou inconscientemente, explícita ou implicitamente, uma base filosófica, isto é, alicerces ontológicos, epistemológicos, éticos e estéticos. Com a leitura da filosofia, esses alicerces fundamentais se revelam, ficam mais claros, aparentes, e a riqueza da vida nos arranca da aparente obviedade do dia-a-dia, do já-dado. Retirar as respostas prontas de perguntas como “quem sou eu”, “o que é a vida”, “o que são as relações pessoais”, “o que é o amor”, “o que é felicidade”, nos traz uma baforada de ar puro, areja a existência, liberta-nos de pensar como-todo-mundo, de fazer-como-todo-mundo, sem no fundo se sentir podendo ver diferente.
Deleuze dizia que o filósofo é aquele que busca para além do dado, aquilo pelo que o dado é dado. Nietzsche, que o filósofo não busca entender os valores de uma sociedade, mas por que as coisas foram valoradas daquela maneira, e que portanto podem tomar outros valores. Ainda segundo Nietzsche, a filosofia é uma arte, uma arte do intelecto, o exercício da criação através do pensar e conceber.
A arte, por sua vez, é para Nietzsche uma forma de expressão do sentir, uma experiência estética que na verdade é uma forma de experienciar a própria vida. Nietzsche propõe que vejamos a filosofia “sob a ótica do artista, mas a arte sob a ótica da vida”. O filósofo do século XX Gilles Deleuze entende que a filosofia trabalha com o pensamento através de conceitos, enquanto que a arte faz pensar por intermédio do que ele chamou de “blocos de sensações”.
Nietzsche e Deleuze propõem que o espectador é sempre também um cocriador da obra de arte, assim como o leitor de filosofia é um cocriador das ideias ali presentes, uma vez que inevitavelmente se deixa transformar por elas, as atualiza em sua própria vida, desde que se permita se deixar tocar.
Spinoza, já no século XVII, nos mostrava que o sentir é já um pensar: nos afeta, nos mobiliza, nos transforma. O pensamento é inconsciente, antes de ser consciente: a consciência é sempre um a posteriori, alerta Spinoza, ela vem depois; é o pensamento que nos toca que é o verdadeiro pensamento, e não o do controle – aliás, o descontrole é sempre reativo a uma tentativa frustrada de controle; o descontrole não é nunca originário, primário, é sempre secundário, por uma falha da proposta autorrepressora.
A potência do pensamento é uma potência criadora de novos mundos internos e de novas expressões da vida no mundo. Por isso arte e filosofia libertam e constroem mundos melhores, melhor qualidade de vida, um ar mais respirável e mais lúdico, favorecendo a que nos encantemos com as pequenas coisas da vida, que se tornam a nossos olhos singulares, únicas, preciosas, em uma terapêutica espontânea de dissolução da necessidade das defesas psíquicas, dos afetos passivos, da reatividade, em um devir criativo de desconstrução e reconstrução de novos modos de ser.