A recente controvérsia espacial envolvendo a missão lunar Peregrine, que planeja transportar cinzas humanas para a Lua, tem gerado um debate fascinante e complexo, englobando direito espacial, tradições indígenas e a crescente comercialização do espaço.
No centro dessa história está o Peregrine, um lander lunar comercial desenvolvido pela empresa Astrobotic, com base na Pensilvânia. Parte de sua carga inclui cinzas humanas, destinadas a um “funeral espacial”. A prática chocou a Nação Navajo, um povo indígena cujas tradições veneram a Lua como um objeto sagrado. O presidente da Nação Navajo, Buu Nygren, expressou sua preocupação em uma carta aos chefes da NASA e do Departamento de Transportes dos EUA, solicitando o adiamento da missão. Para os Navajos, e muitos outros povos indígenas, enviar restos humanos à Lua pode ser visto como um ato de profanação.
Michelle Hanlon, especialista em direito espacial da Universidade do Mississippi, esclarece que, segundo o Tratado do Espaço Exterior de 1967, a exploração e o uso do espaço são livres para todos. Este tratado estabelece diretrizes para a utilização do espaço, proibindo armas nucleares e de destruição em massa e exigindo o cumprimento do direito internacional, mas é importante notar que o tratado não aborda especificamente a questão de enviar restos humanos ao espaço.
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Atualmente, as políticas internacionais de voo espacial são escassas e não evoluíram muito desde a criação do Tratado do Espaço Exterior, mesmo com o setor comercial emergindo como um protagonista no cenário. A missão Peregrine, sendo comercial e baseada nos EUA, obteve uma licença da Administração Federal de Aviação (FAA, do inglês Federal Aviation Administration), que se limita a verificar se a missão cumpre as obrigações internacionais dos EUA e não ameaça a segurança pública ou a segurança nacional, mas não existe uma organização específica nos Estados Unidos que decida o que pode ou não ser enviado à Lua.
O debate sobre a regulamentação espacial
A situação atual levanta questões sobre a necessidade de regulamentar mais estritamente esse setor emergente. Embora Hanlon seja cautelosa em relação à super-regulamentação da indústria espacial, ela reconhece que reclamações como as da Nação Navajo são um lembrete importante da necessidade de incluir diversas vozes nas discussões sobre os limites das ações humanas além da Terra.
A Astrobotic, com sua espaçonave Peregrine, tem a chance de se tornar o primeiro esforço privado a realizar um pouso suave na Lua. Se bem-sucedida, a empresa se juntará a um grupo exclusivo de entidades – todas nações-estado – que conseguiram esse feito: a antiga União Soviética, os EUA, a China e a Índia. Legalmente, nada impede a Astrobotic de prosseguir, pois está em conformidade com as diretrizes de proteção planetária e segue todas as regras e leis aplicáveis às atividades comerciais espaciais além da órbita terrestre.
A NASA financiou parcialmente a Peregrine e está utilizando a missão para enviar seis de seus instrumentos para a Lua. No entanto, a agência adquiriu apenas um transporte na Astrobotic, assim como os proprietários das 15 cargas não-NASA também a bordo, nas quais estão incluídas duas cargas com as cinzas humanas, vindas das empresas americanas Celestis e Elysium Space.
A NASA, durante uma coletiva de imprensa, reconheceu que algumas cargas comerciais não-NASA poderiam ser motivo de preocupação para algumas comunidades.
Quanto custa um funeral no espaço e de quem são as cinzas
A Celestis e a Elysium Space são empresas especializadas em funerais espaciais. A Celestis, por exemplo, carrega materiais de cerca de 70 pessoas e um cachorro, com preços começando em $12,995 pelo serviço de pouso lunar. Entre os “passageiros” estão o autor de ficção científica Arthur C. Clarke e ícones de Star Trek, Gene e Majel Roddenberry.
Considerado um visionário, o escritor britânico Arthur C. Clarke ficou conhecido por suas obras influentes de ficção científica, incluindo “2001: Uma Odisseia no Espaço”, e por suas previsões acertadas sobre avanços tecnológicos futuros.
Gene Roddenberry foi um roteirista e produtor americano, mais conhecido como o criador da icônica série de ficção científica “Star Trek“. Sua esposa, Majel Barrett-Roddenberry, foi uma atriz e produtora americana, famosa por atuar em “Star Trek”, inclusive dando voz ao computador da nave e a personagem Lwaxana Troi.
Esta não é a primeira vez que cinzas humanas são enviadas à Lua. Em 1998, a NASA enviou as cinzas de Eugene Shoemaker, o influente geólogo e astrônomo americano, influente no campo da astrogeologia e co-descobridor do Cometa Shoemaker-Levy 9.
Este novo episódio marca um retorno a essa prática e indica um crescente interesse comercial no espaço.
As tradições Diné (Navajo) oferecem uma visão que se contrapõe a esses funerais. Para eles, a Lua ocupa um lugar sagrado e depositar restos humanos lá é considerado uma profanação desse lugar reverenciado por eles. O presidente da Nação Navajo, em sua carta, expressou a importância de respeitar essas visões culturais no contexto da exploração espacial.
Legalmente, proibir missões específicas à Lua poderia violar o Tratado do Espaço Exterior, e a Nação Navajo não está pedindo uma proibição, mas sim uma consulta.
O assunto é complexo e aponta uma necessidade de ampliar as discussões sobre as ações humanas no espaço, considerando valores culturais diversos e o impacto ambiental potencial de missões lunares crescentes.
Aqui nos deparamos com o delicado equilíbrio entre o avanço tecnológico e a preservação das tradições culturais. Quais seriam os limites da exploração comercial do espaço? Por enquanto, quase 13 mil dólares é a principal condição para garantir um funeral, no mínimo, inusitado. Mas mais do que poder, a questão agora é: devemos considerar esses funerais? Como se daria essa regulamentação? Vamos aguardar cenas dos próximos capítulos…
Fonte: Scientific American