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Inteligência Artificial e Luto: Como a tecnologia influencia nossas emoções

A inteligência artificial generativa está começando a ocupar um espaço inesperado na vida emocional das pessoas: o modo como lidamos com a morte. O avanço recente de sistemas capazes de reconstruir vozes, estilos de escrita e até traços de personalidade de pessoas falecidas está criando um novo tipo de presença digital, algo que promete conforto, mas que também pode alterar, de maneira profunda, a forma como compreendemos o luto e a própria finitude. O fenômeno ainda é recente, mas já movimenta pesquisadores, profissionais de saúde mental e filósofos interessados em entender até onde essa tecnologia pode nos levar.

Um dos especialistas que têm refletido sobre esse tema é Shisei Tei, pesquisador de psiquiatria e filosofia da mente que trabalha na Universidade de Kyoto. Paradoxalmente, Tei se descreve como alguém pouco ligado à tecnologia, não usa smartphone e se considera desajeitado com dispositivos digitais. Ainda assim, como cientista, utiliza inteligência artificial para analisar dados psiquiátricos e, em sua vida pessoal, para planejar trilhas personalizadas. O contraste entre sua rotina e suas preocupações ressalta algo fundamental: não é preciso ser tecnófilo para perceber que a inteligência artificial está remodelando aspectos profundos da experiência humana.

Tei argumenta que a inteligência artificial está transformando a forma como lembramos e nos despedimos de quem já morreu. Em um capítulo que escreveu para o livro SecondDeath: Experiences of Death Across Technologies, ele analisa como a possibilidade de construir réplicas digitais de indivíduos falecidos tende a mexer com o processo de luto. Segundo ele, esses sistemas têm o potencial de reduzir barreiras de acesso a cuidados psicológicos, especialmente por meio de chatbots terapêuticos. Porém, quando usados para simular a continuidade de alguém que morreu, podem gerar distorções significativas na compreensão da morte. A presença digital recriada oferece conforto imediato, prolonga a memória de forma ativa e pode até amenizar o impacto emocional inicial, mas também tem um efeito colateral, apontando que a fronteira entre presença e ausência pode se tornar difusa, o que dificulta a aceitação da impermanência, da ausência de alguém que se foi.

Inteligência Artificial, a mente e a continuidade da vida

Para compreender essa preocupação, Tei recorre a contextos históricos e culturais. Diversas tradições ao longo dos séculos já imaginaram a mente como algo separado do corpo, reforçando a crença de que a consciência, de alguma forma, persiste após a morte. A sociedade contemporânea, mesmo distanciada de muitas dessas tradições, continua a tratar a morte como um obstáculo a ser superado, adiado ou contornado; e a prova disso são figuras como Bryan Johnson, que investe sua fortuna para tentar driblar a morte, se colocando como cobaia no seu próprio experimento, se sujeitando a toda tecnologia e recursos experimentais para ter sucesso no seu objetivo que é explicitado no nome do seu grande projeto, que virou um movimento mundial pró-saúde: “DON’T DIE”.

A busca tecnológica por preservar identidades, ainda que de formas diferentes de Johnson, seja em bancos de dados, seja em simuladores, reforça essa tendência, e ao oferecer uma forma de “continuação da vida” digital, a inteligência artificial parece encaixar-se perfeitamente nessa visão moderna de evitar o fim.

O trabalho de Tei integra psiquiatria, filosofia religiosa e neurofenomenologia, uma abordagem influenciada pelo biólogo Francisco Varela. Um dos conceitos centrais dessa perspectiva é o de “eus sem ego” ou, no inglês, “selfless selves”. A ideia, inspirada em tradições budistas tibetanas, descreve seres vivos como sistemas sustentados pela interdependência entre suas partes. O indivíduo não é um núcleo fixo, mas algo fluido, construído na relação com o ambiente, com outras pessoas e com o coletivo. Assim como células que mantêm o organismo, pessoas são simultaneamente distintas e participantes de uma vida comum.

O que fica mais interessante é que Tei aponta que sistemas de inteligência artificial compartilham certos elementos desse modelo, apresentando identidades artificiais, mas sem possuir um eu contínuo ou autoconsciência no mesmo sentido que o humano. Sua construção depende de vastas redes de dados, interações e treinamento, o que aponta para um tipo de existência configurada por relações, mais do que por um centro interno estável. Em paralelo, nossas interações online, frequentemente anônimas e moduladas por plataformas, também reforçam essa noção de identidade como algo maleável.

Um conforto cognitivo ou uma ameaça à reflexão?

A crítica de Tei é que, enquanto filosofias tradicionais e práticas terapêuticas enfatizam a importância de lidar com a incerteza, a inteligência artificial tende a oferecer respostas rápidas, diretas e reducionistas, o que, para ele, é um risco pela precisão limitada dessas respostas, e também pela criação de um hábito cognitivo: recorrer ao algoritmo quando nos deparamos com questões que exigiriam reflexão, tempo e aceitação da ambiguidade e imprevisibilidade. A perda dessa capacidade de conviver com o incerto compromete a elaboração emocional e a tomada de decisões complexas, justamente porque terceiriza o esforço subjetivo envolvido em entender o que estamos vivendo.

Esse mecanismo se torna especialmente problemático quando aplicado a processos de luto. As mortes que enfrentamos ao longo da vida acionam não apenas tristeza, mas a necessidade de reorganizar a identidade e as conexões sociais. Essa reorganização demanda tempo, convivência com o silêncio, reconstrução do sentido de continuidade. Ao simular conversas com alguém que não está mais aqui, a inteligência artificial pode interromper esse processo, oferecendo a ilusão de certeza e prolongando uma forma de apego que impede o fechamento emocional.

A tecnologia não substitui o contato humano

Ao mesmo tempo, Tei ressalta algo que a inteligência artificial não substitui: a importância da interação humana. Empatia construída em encontros presenciais com expressões, pausas, gestos e tonalidades, fortalece o senso de pertencimento e a compreensão compartilhada do que significa estar vivo. Além disso, momentos de solidão e introspecção, muitas vezes desconfortáveis, podem nutrir esperança e resiliência. São essas experiências que moldam nossa percepção da morte, que nos permitem vê-la não apenas como um fim absoluto, mas como parte de uma continuidade social. Morremos, mas deixamos traços em nossos vínculos.

Esse entendimento é essencial também nos cuidados de fim de vida. Integrar conceitos como interdependência, impermanência e dignidade nos processos de acompanhamento pode melhorar a forma como tratamos quem está morrendo e apoiar as pessoas que permanecem. Para Tei, negar a inevitabilidade da morte equivale a negar aspectos fundamentais da própria vida. A antecipação da finitude, longe de ser um peso, pode orientar escolhas mais conscientes.

A preocupação com os impactos psicológicos da IA não se limita ao luto, colocando o risco mais amplo da possibilidade de enfraquecer a empatia humana e a capacidade de regular emoções sem apoio externo. Quando delegamos a máquinas a tarefa de interpretar nossos sentimentos ou oferecer consolo, diminuímos a prática interativa de compreender e ser compreendido. Além disso, ao favorecer respostas rápidas, a inteligência artificial pode incentivar raciocínios simplificados em situações que exigem profundidade, alterando a forma como avaliamos problemas, conduzimos relacionamentos e lidamos com desafios.

O conjunto dessas questões aponta que a inteligência artificial não está apenas reorganizando processos práticos, mas também nossas paisagens emocionais e culturais. Ao transformar a maneira como lembramos o passado e imaginamos o fim da vida, ela participa de uma redefinição do que consideramos humano. Não se trata de rejeitar a tecnologia, mas de compreender seus efeitos para que possamos usá-la com discernimento.

Em um contexto digital dinâmico, essa reflexão é particularmente importante, já que ferramentas que utilizamos para lidar com rotinas diárias, comunicação e trabalho já estão se estendendo para territórios antes considerados estritamente íntimos. A pergunta agora é como equilibrar as possibilidades oferecidas pela inteligência artificial com a preservação das dimensões humanas que dependem de presença, vulnerabilidade e convivência com o incontrolável.

Como Tei conclui, a morte é certa desde o início da vida, e negar sua inevitabilidade, seja por desconforto pessoal ou por soluções tecnológicas, pode distorcer nosso entendimento do que significa viver. A inteligência artificial continuará avançando e, com ela, novas formas de lidar com o luto e a memória, e com outras formas de relações humanas. Cabe a nós decidir até que ponto queremos permitir que essas tecnologias participem daquilo que há de mais profundo na existência humana.

Fonte: Springer

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