Sistemas de inteligência artificial do tipo LLM (Large Language Models) dominam a linguagem natural, por isso seus resultados são tão impressionantes. Mais do que um simples meio de comunicação, a linguagem funciona como um reflexo direto da nossa mente, dizendo muito sobre nós, e isso acontece pela escolha das palavras, pelo tom de voz, pela velocidade da fala e também pela entonação. Essa relação da linguagem com o que somos vem sendo estudada há décadas por pesquisadores em psicologia, e agora os avanços recentes em inteligência artificial abriram um novo campo de possibilidades, pois computadores conseguem identificar sinais sutis que podem escapar até mesmo dos olhos (e ouvidos) mais treinados de um clínico.

Um estudo publicado na revista Advances in Methods and Practices in Psychological Science, conduzido por Josh Oltmanns, professor assistente de Ciências Psicológicas e do Cérebro na Universidade de Washington em St. Louis (WashU), mostra como ferramentas de inteligência artificial podem ajudar psicólogos a detectar traços de personalidade e sinais precoces de transtornos mentais a partir de padrões de fala.
Linguagem como dado psicológico
“Os nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos se refletem na linguagem”, afirma Oltmanns. Isso significa que tanto o conteúdo (as palavras escolhidas) quanto a forma (como pronunciamos e entonamos) podem servir de janela para a mente.
Esse campo de investigação não é totalmente novo. Há mais de 20 anos, pesquisadores desenvolveram o software Linguistic Inquiry and Word Count (LIWC), que já permitia analisar textos escritos e relacioná-los a indicadores psicológicos. Mais recentemente, estudos passaram a usar postagens em redes sociais para identificar correlações entre palavras e traços da personalidade, como os chamados “Big Five” (abertura à experiência, neuroticismo, agradabilidade, conscienciosidade e extroversão).
Mas o fato é que a nossa fala traz camadas adicionais de informação: A velocidade do discurso pode sinalizar ansiedade (fala acelerada) ou depressão (fala lenta), por exemplo. O tom, o volume e até variações sutis de frequência sonora também carregam pistas. No total, existem centenas de parâmetros acústicos que podem ser extraídos de um simples trecho de fala.
A vantagem da inteligência artificial
Para os psicólogos, captar todos esses sinais simultaneamente é uma tarefa praticamente impossível, porque a atenção humana é limitada, e mesmo um profissional experiente pode deixar passar detalhes cruciais. É aí que a inteligência artificial se destaca!
Modelos de aprendizado de máquina conseguem analisar rapidamente grandes volumes de dados de fala, cruzando centenas de variáveis em busca de padrões consistentes. Oltmanns e sua equipe destacam que um sistema bem treinado pode oferecer análises mais rápidas, abrangentes e, em alguns casos, até mais precisas do que avaliações exclusivamente humanas.
Na prática, um psicólogo poderia realizar uma entrevista inicial com um paciente e, além de aplicar seu julgamento clínico, inserir a gravação em um programa de inteligência artificial. O software, então, identificaria características de personalidade e possíveis sinais de transtornos mentais, funcionando como um “segundo olhar”, se colocando como uma função complementar importante. A ideia não é substituir o clínico, mas apoiá-lo com informações adicionais que reforcem (ou desafiem) sua interpretação.
Se aplicadas de forma responsável, essas ferramentas podem mudar a forma como a psicologia clínica lida com diagnósticos e acompanhamento. Em vez de submeter pacientes a longas baterias de testes, seria possível obter insights relevantes apenas com amostras de fala, tornando as avaliações mais ágeis e acessíveis, ampliando o alcance de cuidados psicológicos.
Além disso, a possibilidade de monitorar mudanças na fala ao longo do tempo abre caminho para acompanhar a evolução de um tratamento ou a progressão de um transtorno. Imagine, por exemplo, registrar periodicamente conversas de um paciente em terapia e avaliar, com apoio de um sistema de inteligência artificial, se sinais de ansiedade ou depressão estão aumentando ou diminuindo.
Mas claro… o benefícios vêm acompanhados de desafios éticos e riscos importantes a serem considerados, como, por exemplo, o risco de vieses
Muitos algoritmos são treinados com dados coletados na internet, que não representam de forma equilibrada a diversidade cultural, racial e social da população: daí o viés nos modelos. O que quer dizer que certas variações de fala podem ser interpretadas incorretamente como sintomas de distúrbios mentais quando, na realidade, são apenas diferenças linguísticas ou culturais.
Oltmanns chama atenção para esse ponto: “Se esses vieses não forem enfrentados, é possível que diferenças culturais na fala sejam rotuladas de forma equivocada como sinais de problemas de saúde mental”.
O papel do SPAN Study
Para reduzir esse risco, a equipe do WashU tem utilizado dados do SPAN Study, um estudo longitudinal em andamento que já coletou centenas de horas de entrevistas com mais de 1.600 adultos em St. Louis. Essa amostra é particularmente valiosa por refletir a diversidade racial da cidade.
Os pesquisadores analisam, em especial, padrões de fala entre participantes brancos e negros, com o objetivo de garantir que os modelos de inteligência artificial não reproduzam distorções ou preconceitos. A escolha do SPAN Study demonstra que a construção de ferramentas confiáveis depende de bancos de dados representativos e cuidadosamente coletados.
Apesar dos avanços, ainda há muitas perguntas sem resposta. A título de breves exemplos, longe de contemplar a maioria das perguntas, podemos citar:
- Qual é a diferença real entre informações extraídas da fala e da escrita?
- Quantas palavras ou quanto tempo de fala são necessários para obter análises confiáveis?
- De que forma modelos comerciais de avaliação psicológica por inteligência artificial, já vendidos a hospitais e clínicas, foram validados cientificamente?
E isso não é nem de perto tudo que merece ser questionado, apontando para lacunas que mostram que, embora promissora, a tecnologia ainda está em desenvolvimento, precisa ser usada com cautela e, acima de tudo, torna o ser humano especialista indispensável!
Olhando para o futuro da psicologia com inteligência artificial
Oltmanns e seus colegas acreditam que a próxima etapa é integrar de maneira mais profunda as dimensões acústicas e textuais da linguagem. Os modelos precisarão avaliar não apenas o que é dito, mas também como é dito, em tempo real e em contextos variados.
Outro ponto fundamental é a validação independente de ferramentas já disponíveis no mercado. Sem estudos robustos que comprovem eficácia e imparcialidade, existe o risco de uso inadequado em ambientes clínicos.
Por mais que o horizonte seja promissor, ainda há todas as questões éticas e legais que precisarão ser enfrentadas: como garantir a privacidade de dados tão sensíveis como são gravações de fala? Como assegurar que pacientes compreendam e autorizem o uso dessas tecnologias em seus tratamentos? Como os especialistas informam sobre o uso sem parecerem querer induzir à autorização do paciente? Há muito a ser pensado, sinalizando, indiscutivelmente, uma ação complementar entre ser humano e máquina.
A inteligência artificial tem o potencial de transformar a psicologia clínica, tornando avaliações mais rápidas, abrangentes e acessíveis, mas ao mesmo tempo, a responsabilidade de pesquisadores e profissionais é enorme: garantir que esses sistemas não reproduzam preconceitos, que sejam transparentes em seus métodos e que funcionem como aliados, e não substitutos da expertise humana.
Como ressalta Oltmanns, a inovação precisa andar de mãos dadas com o cuidado. Se for feita de forma inteligente, essa integração entre psicologia e inteligência artificial pode inaugurar uma nova era no entendimento da mente humana. Mas o entusiasmo não pode superar a prudência: cada avanço precisa ser testado, validado e discutido com a seriedade que a saúde mental merece.
Fonte: Sage Journals