No fascinante universo das partículas subatômicas, poucos elementos despertam tanta curiosidade quanto os neutrinos. Imagine partículas tão leves, tão sutis, que são capazes de atravessar a Terra inteira com a mínima chance de colisão com outros átomos. É como se tivéssemos, na física, nossos próprios fantasmas – entidades que, com sua capacidade de atravessar paredes, não chegam aos pés dos neutrinos!
Essas partículas quase fantasmagóricas não são apenas notáveis por sua capacidade de passar despercebidas, elas também possuem uma característica única no reino das partículas fundamentais: a habilidade de mudar de identidade. Nosso universo subatômico é palco de um verdadeiro espetáculo de transformações, onde os neutrinos oscilam entre três formas conhecidas, em um processo cíclico fascinante conhecido como oscilação de neutrinos. Eles são, em essência, camaleões quânticos, alterando sua essência de uma forma que desafia a compreensão comum.
Mas as descobertas não param por aí, algumas experiências indicam uma história ainda mais complexa e misteriosa. A inconsistência nos dados de diferentes experimentos levou alguns cientistas a especularem sobre a existência de mais tipos de neutrinos além dos três já conhecidos. Aqui entram em cena os chamados neutrinos estéreis – partículas hipotéticas que, diferentemente de suas contrapartes conhecidas, não interagiriam nem mesmo através da força nuclear fraca.
A possível existência desses neutrinos estéreis desafia o atual Modelo Padrão da física de partículas, o alicerce teórico que define nossa compreensão da matéria e energia em nível subatômico. Se esses neutrinos adicionais realmente existirem, estaríamos diante de uma necessidade de revisão substancial desse modelo, algo que poderia revolucionar nossa compreensão do universo.
Nesse contexto de descoberta e exploração, surge o Programa Short-Baseline Neutrino (SBN) (Program de Neutrino de Curto Alcance, em tradução livre). Esta nova empreitada experimental promete lançar luz sobre as incógnitas que rondam essas partículas, com o objetivo específico de verificar a existência – ou a ausência – dos enigmáticos neutrinos estéreis. Este programa poderia abrir novos caminhos para entendermos os segredos mais profundos do cosmos.
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Partículas confusas
Na década de 1960, uma série de experimentos começou a revelar um quadro intrigante sobre essas partículas subatômicas. Enquanto as observações iniciais sugeriam três tipos distintos de neutrinos – eletrônico, múon e tau – novas descobertas apontavam para um panorama mais complexo.
Foi na energia emanada do nosso próprio sol, o maior reator nuclear ao nosso redor, que os cientistas esperavam entender melhor o neutrino eletrônico, mas as medições revelaram uma realidade surpreendente: apenas um terço do número esperado desses neutrinos chegava à Terra. Paralelamente, o estudo das interações de partículas na atmosfera terrestre previa uma abundância de neutrinos de múon duas vezes maior do que a dos neutrinos eletrônicos, mas o que se observou foi uma quantidade aproximadamente igual entre ambos.
Nesse cenário de incertezas, a proposta audaciosa do físico Bruno Pontecorvo em 1957 ganhava força. Ele sugeriu que os neutrinos poderiam oscilar, mudando sua identidade – uma ideia revolucionária que só seria confirmada décadas depois, entre 1998 e 2001, com a detecção dessas partículas transformando-se em outro tipo durante seu percurso até nós.
A experiência do Detector de Neutrinos Cintilador Líquido (LSND – do inglês Liquid Scintillator Neutrino Detector), no Laboratório Nacional de Los Alamos, adicionou mais uma camada a esse mistério. Ao observar a decaída de múons positivos, os cientistas esperavam detectar uma pequena porcentagem de neutrinos antimatéria do elétron, mas os resultados superaram as previsões, uma diferença que sugeria que algo estava faltando em nossa compreensão sobre os neutrinos.
E foi assim que surgiu a hipótese do neutrino estéril, uma quarta variante que poderia explicar essas discrepâncias. Entretanto, outros experimentos baseados em aceleradores não encontraram evidências que apoiassem essa teoria, tornando o cenário ainda mais enigmático.
Neste ponto, a comunidade científica precisava de mais respostas, e para isso, o experimento MiniBooNE (Mini Booster Neutrino Experiment) foi concebido no Fermilab. Com tecnologia semelhante à do LSND, mas com capacidades de detecção aprimoradas, o MiniBooNE buscou esclarecer as descobertas anteriores. Entre 2002 e 2018, acumulou dados que, embora descartassem a explicação mais simples para os achados do LSND, não desvendavam completamente o mistério dos neutrinos.
Paralelamente, outros estudos como o MINOS (Main Injector Neutrino Oscillation Search), também no Fermilab, e o experimento IceCube na Antártica, não encontraram indícios dos enigmáticos neutrinos estéreis. Observações em reatores nucleares inicialmente sugeriram um déficit de neutrinos eletrônicos, mas análises posteriores questionaram esses resultados.
Foi então que o MicroBooNE entrou em cena em 2015, empregando uma tecnologia ainda mais sofisticada para analisar as interações dos neutrinos. Seu objetivo era esclarecer de vez se o que o MiniBooNE havia observado eram realmente eventos de oscilação ou apenas interações que se assemelhavam. No entanto, até 2021, o MicroBooNE não encontrou evidências que suportassem a existência dos neutrinos estéreis.
Uma resposta sobre os neutrinos
Na vanguarda da física de partículas, o Laboratório Fermilab nos Estados Unidos está prestes a escrever um novo capítulo na busca pela compreensão dos neutrinos. Com o ambicioso Programa de Neutrinos de Curto Alcance (SBN – Short-Baseline Neutrino), os pesquisadores se preparam para resolver, de uma vez por todas, o mistério dos neutrinos estéreis. A estratégia adotada é tão inovadora quanto promissora, envolvendo dois detectores avançados que prometem esclarecer o enigma dessas partículas subatômicas.
Localizados ao longo do mesmo feixe de neutrinos usado pelos experimentos MiniBooNE e MicroBooNE, os dois novos detectores – SBND (Short-Baseline Neutrino Detector) e ICARUS (Imaging Cosmic and Rare Underground Signals) – empregam argônio líquido para detectar interações de neutrinos. O SBND, mais próximo da fonte de neutrinos, e o ICARUS, um pouco mais distante, formam uma dupla poderosa nessa investigação.
A abordagem experimental é focada em um feixe composto predominantemente de neutrinos do múon, originados do acelerador Booster do Fermilab. Ao passar primeiro pelo SBND, o experimento determinará a composição exata de neutrinos eletrônicos e de múon. Em seguida, o feixe, após percorrer cerca de 600 metros, chega ao ICARUS, onde a composição é analisada novamente. Comparando os dados dos dois detectores, os cientistas buscam identificar quaisquer mudanças no no tipo dos neutrinos ao longo do percurso.
Além disso, uma sofisticação adicional na análise vem do fato de cada detector medir a energia carregada pelas partículas, uma capacidade é crucial, pois a oscilação de neutrinos varia com a energia, o que permite aos pesquisadores caracterizar a dependência energética da oscilação. O ponto central dessa análise é observar tanto o desaparecimento de neutrinos de múon quanto o surgimento de neutrinos eletrônicos. Uma discrepância nessa balança poderia ser um forte indicativo da oscilação para neutrinos estéreis.
O programa SBN supera tentativas anteriores por várias razões. Primeiramente, ele se beneficia de um feixe de neutrinos que vem sendo estudado há décadas, conferindo uma base sólida de conhecimento prévio. Além disso, a configuração permite duas medições diretas da composição do feixe de neutrinos, evitando a necessidade de estimativas baseadas apenas em cálculos teóricos. A tecnologia idêntica utilizada nos dois detectores também é um trunfo, pois reduz significativamente a possibilidade de que sinais observados sejam devidos a diferenças na resposta dos equipamentos.
ICARUS, com sua história rica e pioneirismo como grande detector de neutrinos de argônio líquido, já passou por uma jornada notável desde sua concepção na Europa até sua revitalização no Fermilab em 2017. Por outro lado, o SBND, desenvolvido especificamente para este programa, ocupa uma posição estratégica mais próxima da fonte de neutrinos. Com sua instalação concluída em abril de 2023, e com a expectativa de receber seu primeiro feixe em fevereiro de 2024, o SBND promete ser um componente-chave na resolução dessa intrincada questão científica.
Os próximos passos
É essencial lembrar que as descobertas em física de partículas raramente são instantâneas, especialmente no caso dos neutrinos. Estas partículas enigmáticas, conhecidas por suas baixíssimas taxas de interação, exigem paciência e tempo para que os dados coletados sejam suficientemente robustos para validar ou refutar a hipótese dos neutrinos estéreis. Assim, espera-se que os pesquisadores dediquem alguns anos à observação e registro de colisões antes de chegarem a conclusões definitivas.
Além da busca pelos neutrinos estéreis, o SBN tem um papel crucial em preparar o terreno para um dos projetos mais ambiciosos do Fermilab: o Deep Underground Neutrino Experiment (DUNE). Com o SBND prevendo registrar de 20 a 30 vezes mais interações entre neutrinos e átomos de argônio do que o observado anteriormente, os insights obtidos serão fundamentais para o DUNE. Este experimento colossal, localizado a cerca de 1.300 km de Fermilab, em uma caverna subterrânea na Dakota do Sul, promete expandir ainda mais nosso entendimento sobre a oscilação de neutrinos, investigando como as partículas de matéria e antimatéria oscilam.
O DUNE, atualmente em construção e com previsão de início de operações no final dos anos 2020 ou início dos 2030, representa um passo gigantesco na pesquisa de neutrinos. As descobertas feitas pelo SBN não só contribuirão para o sucesso do DUNE, mas também acelerarão a obtenção de conclusões neste projeto futuro.
Desde a proposta inicial do neutrino em 1930, passando pela descoberta de múltiplos tipos de neutrinos em 1962, até a revelação de sua capacidade de transformar sua identidade no início do século XXI, a jornada do neutrino tem sido repleta de surpresas e descobertas. A eventual confirmação da existência de neutrinos estéreis apenas adicionaria mais um capítulo fascinante na investigação de partículas subatômicas. Independentemente dos resultados dos experimentos atuais, é evidente que o neutrino continua a ser uma fonte inesgotável de histórias e descobertas científicas.
Com o progresso do SBN e a antecipação do DUNE, estamos à beira de possivelmente desvendar mais segredos desse intrigante habitante do universo subatômico. O que será que essas partículas ainda têm a nos revelar?
Fonte: Scientific American