Uma descoberta pode apontar para a partícula mais energética já registrada, prometendo fornecer pistas valiosas sobre eventos cósmicos massivos. Trata-se de um neutrino de altíssima energia que foi detectado por um observatório ainda em construção no fundo do Mar Mediterrâneo.
Os neutrinos são partículas subatômicas que se deslocam quase à velocidade da luz e só se tornaram objeto de estudo mais recentemente, nas últimas décadas. Essas partículas são consideradas mensageiros de alguns dos eventos mais catastróficos do universo, como explosões de buracos negros supermassivos em galáxias distantes. No dia 18 de junho, durante a conferência Neutrino 2024 em Milão, Itália, o físico João Coelho surpreendeu os colegas ao revelar essa descoberta no final de sua apresentação.
O evento foi descrito como “fantástico” por Francis Halzen, físico da Universidade de Wisconsin–Madisonm que destacou o potencial do observatório ARCA (Astroparticle Research with Cosmics in the Abyss), uma estrutura composta por detectores presos a ‘cordas’ no fundo do mar a 3.500 metros de profundidade, ao sudeste da ilha italiana da Sicília. Essas cordas são longas estruturas verticais no fundo do mar que sustentam os detectores de neutrinos.
Cada uma dessas cordas possui várias esferas ao longo de seu comprimento de um material semelhante ao acrílico, conhecido como polimetilmetacrilato. Essas esferas são unidades de detecção que contêm detectores de luz, que são dispositivos sensíveis capazes de captar os flashes de luz produzidos por partículas subatômicas altamente energéticas.
Ficou sabendo que o maior colisor de partículas do mundo pode ser construído na China? Clica aqui para saber quando e as possibilidades disso realmente acontecer!
A detecção de neutrinos de altíssima energia
Coelho, que trabalha no Laboratório de AstroPartículas e Cosmologia em Paris, afirmou que o neutrino detectado “se destaca de maneira impressionante” em relação a outros eventos. No entanto, ele não revelou a direção exata de onde o neutrino veio nem quando a observação ocorreu, evitando fornecer pistas aos concorrentes sobre a possível origem da partícula. Ele prometeu que esses detalhes serão divulgados em um artigo futuro. Nepomuk Otte, físico do Instituto de Tecnologia da Geórgia em Atlanta, expressou interesse em saber de onde no céu o neutrino se originou.
O ARCA é a maior parte de um observatório de neutrinos chamado Telescópio de Neutrinos de Quilômetro Cúbico (KM3NeT), que também inclui uma matriz perto de Toulon, França. A colaboração internacional abrange países europeus, além de Marrocos, África do Sul, Austrália, Geórgia, China e Emirados Árabes Unidos.
Desde meados da década de 2010, o ARCA vem coletando dados e atualmente possui 28 cordas de detectores, com planos de expansão para 230 até 2028. Cada corda tem 800 metros de comprimento e contém 18 unidades de detecção – as esferas de polimetilmetacrilato –, de meio metro de diâmetro, equipadas com detectores de luz capazes de captar apenas alguns fótons.
A maioria da luz que o ARCA detecta resulta de partículas cósmicas altamente energéticas que, ao colidirem com a atmosfera da Terra, produzem chuvas de partículas subatômicas carregadas eletricamente. Essas chuvas podem viajar por quilômetros na água, deixando rastros de luz fraca que o ARCA pode detectar. Além disso, o observatório também capta luz de outros tipos de partículas, incluindo neutrinos. Em vez de detectar neutrinos diretamente, o ARCA observa as partículas altamente energéticas chamadas múons, produzidas quando um neutrino colide com uma molécula de ar, água ou rocha.
Neutrinos podem atravessar a Terra, portanto, as chuvas de partículas que eles produzem podem vir de qualquer direção, ao contrário das partículas resultantes de raios cósmicos, que geralmente vêm da atmosfera. Portanto, quando o ARCA detecta uma chuva de partículas vinda de cima, pode ser difícil determinar a fonte. No entanto, chuvas horizontais ou ascendentes são mais provavelmente causadas por neutrinos.
Elisa Resconi, física de neutrinos da Universidade Técnica de Munique, Alemanha, explica que para os neutrinos de mais alta energia – aqueles com meio petaelétron-volt (0,5×10¹⁵ eV) ou mais – a Terra funciona como uma barreira. Isso deixa uma faixa de céu ao redor do horizonte onde as partículas que roçam a Terra podem ser detectadas e facilmente distinguidas dos raios cósmicos.
Em sua apresentação, Coelho afirmou que mais de um terço dos sensores do ARCA registraram flashes consistentes com um múon cruzando o observatório horizontalmente, produzido por um neutrino que chegou de cerca de um grau abaixo do horizonte. Segundo ele, a partícula provavelmente tinha energia de muitas dezenas de petaelétron-volts, o que a tornaria a partícula mais energética já detectada.
O interesse pelas partículas
O interesse por neutrinos de altíssima energia não para por aí. Pelo menos quatro novos observatórios para detectar essas partículas extremas estão em construção ou foram propostos. Naoko Kurahashi Neilson, pesquisadora de neutrinos da Universidade Drexel na Filadélfia, detalhou alguns desses planos em outra palestra. Resconi e seus colaboradores vêm realizando testes bem-sucedidos para um futuro observatório de neutrinos na Ilha de Vancouver, Canadá. Otte lidera outro projeto proposto, com um protótipo já sendo testado em Utah, que buscaria neutrinos que tangenciam a Terra monitorando a atmosfera logo acima do horizonte em busca de flashes de luz.
Até recentemente, apenas o IceCube, um observatório de neutrinos muito maior localizado no gelo antártico, tinha a capacidade de detectar essas partículas extremas. A detecção pelo ARCA, que é muito menor, torna o feito ainda mais notável. Halzen, o principal investigador do IceCube, comparou a descoberta a ganhar na loteria.
A detecção de um neutrino de altíssima energia pelo ARCA é um marco significativo para a física de partículas, validando o potencial do observatório submarino, apresentando possibilidades de uma nova compreensão sobre eventos cósmicos cataclísmicos que ocorrem em nosso universo. Com a construção de novos observatórios ao redor do mundo, o futuro da pesquisa de neutrinos parece mais promissor do que nunca.
Fonte: Nature