Para mais de um bilhão de pessoas ao redor do mundo, as enxaquecas são uma realidade debilitante. Caracterizadas por uma dor latejante na cabeça, acompanhada de náuseas, visão turva e fadiga, elas podem durar dias, e apesar de sua prevalência, os mecanismos cerebrais que desencadeiam essas dores intensas têm sido um enigma para os cientistas.
Recentemente, um estudo publicado na revista Science, utilizando um modelo com ratos trouxe novas pistas sobre os eventos neurológicos que podem desencadear enxaquecas.
Esta pesquisa sugere que um breve “apagão” no cérebro, onde a atividade neuronal é temporariamente interrompida, altera o conteúdo do líquido cefalorraquidiano (LCR) – o fluido transparente que envolve o cérebro e a medula espinhal. Os pesquisadores propõem que esse fluido alterado viaja através de uma abertura anatômica previamente desconhecida para os nervos no crânio, ativando receptores de dor e inflamação, resultando nas dores de cabeça características das enxaquecas.
Segundo Gregory Dussor, neurocientista da Universidade do Texas em Dallas, este trabalho representa uma mudança de paradigma na forma como entendemos a origem das dores de cabeça. Ele sugere que a enxaqueca pode ser um sinal de alerta para várias anomalias ocorrendo no cérebro. Para Maiken Nedergaard, neurocientista da Universidade de Copenhagen e co-autora do estudo, a dor da enxaqueca pode ser protetiva, sinalizando ao indivíduo que é hora de descansar e se recuperar.
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De onde vem a sensação de dor da enxaqueca?
O cérebro, por si só, não possui receptores de dor; a sensação de dor de cabeça provém de áreas fora do cérebro, no sistema nervoso periférico. O sistema nervoso periférico é a parte do sistema nervoso que inclui todos os nervos fora do cérebro e da medula espinhal, responsável por transmitir sinais entre o sistema nervoso central e o resto do corpo.
A complexidade de como o cérebro, sem ligação direta com o sistema nervoso periférico, desencadeia os nervos que causam dor de cabeça torna o tratamento das enxaquecas um desafio.
Os cientistas, ao trabalharem com um modelo de pesquisa com ratos para um tipo específico de enxaqueca, conhecida como enxaqueca com aura, buscaram explorar essa conexão. A enxaqueca com aura é um tipo de enxaqueca caracterizada por sintomas neurológicos temporários, como distúrbios visuais (como luzes piscando ou pontos cegos), formigamento, e dificuldade de fala, que precedem ou acompanham a dor de cabeça.
Cerca de um terço das pessoas que sofrem de enxaqueca experimenta a fase de aura antes da dor de cabeça, caracterizada por sintomas como náuseas, vômitos, sensibilidade à luz e dormência, que podem durar de cinco minutos a uma hora. Durante essa fase, o cérebro passa por um “apagão” chamado depressão cortical alastrante (DCA), onde a atividade neuronal é temporariamente interrompida.
Estudos anteriores sugeriram que a dor de cabeça ocorre quando moléculas no LCR drenam do cérebro e ativam nervos nas meninges, as camadas que protegem o cérebro e a medula espinhal. A equipe de Nedergaard quis investigar se havia vazamentos semelhantes no LCR que ativavam o nervo trigêmeo, cujas ramificações se unem no gânglio trigeminal na base do crânio, um centro que religa informações sensoriais entre a face e o maxilar ao cérebro e contém receptores para proteínas de dor e inflamação.
Os autores criaram ratos que experimentavam DCAs e analisaram o movimento e o conteúdo de seu LCR. DCA ou depressões corticais alastrantes, referem-se a eventos neurológicos caracterizados por uma onda de despolarização dos neurônios, seguida por um período prolongado de atividade neuronal reduzida. Nos ratos, durante uma DCA, eles encontraram que as concentrações de algumas proteínas no fluido caíram para menos da metade de seus níveis usuais, enquanto outras proteínas mais que dobraram, incluindo a proteína CGRP (Peptídeo Relacionado ao Gene da Calcitonina), conhecida por transmitir dor e ser alvo de medicamentos contra enxaqueca.
Além disso, os pesquisadores descobriram uma abertura previamente desconhecida nas camadas protetoras ao redor do gânglio trigeminal, permitindo que o LCR inundasse essas células nervosas. O gânglio trigeminal é um conjunto de células nervosas localizado na base do crânio que atua como um centro de retransmissão para sensações de dor e outras sensações faciais, enviando essas informações ao cérebro.
Para testar os efeitos, eles coletaram fluidos espinhais com diferentes concentrações de proteínas e os utilizaram em ratos de controle. O fluido coletado logo após uma DCA aumentou a atividade das células nervosas trigeminais, indicando que dores de cabeça poderiam ser desencadeadas por sinais de dor enviados dessas células ativadas. No entanto, o fluido coletado 2,5 horas após as DCAs não teve o mesmo efeito.
Nedergaard observou que qualquer substância liberada no LCR é degradada rapidamente, sendo um fenômeno de curta duração. Philip Holland, neurocientista do King’s College London, destacou a importância dessa descoberta, que mostra uma interação potencial entre as mudanças no cérebro e o sistema periférico. Segundo ele, é crucial estar mais atento a essa comunicação entre esses dois componentes do sistema nervoso.
Dussor sugere que estudos futuros devem explorar por que as proteínas no LCR que atingem o gânglio trigeminal resultam em dores de cabeça, e não em outros tipos de dor. Essa descoberta abre uma série de novas questões e provavelmente será a origem de muitos novos projetos de pesquisa.
Fonte: Nature