A tendência de enxergar rostos em objetos inanimados, conhecida como pareidolia, sempre despertou fascínio entre psicólogos, neurocientistas e leigos. Seja um rosto em uma nuvem ou a imagem da Virgem Maria em um sanduíche, como o caso famoso de Diana Duyser em 1994, o fenômeno parece nos conectar a um instinto primitivo de reconhecer faces e expressões no ambiente ao nosso redor.
No entanto, as explicações sobre por que a pareidolia ocorre ainda são parciais e envolvem elementos de nossa evolução e de nossa biologia. Um estudo recente do MIT, conduzido pelo Laboratório de Ciência da Computação e Inteligência Artificial (CSAIL), explora essa questão sob um novo ângulo: como humanos e inteligências artificiais processam esses rostos ilusórios.
Pareidolia: Um fenômeno humano e artificial
A pesquisa revelou que as IAs, assim como os humanos, são capazes de detectar rostos em objetos inanimados, mas com uma diferença fundamental. Enquanto nós, humanos, tendemos a perceber rostos em objetos sem muito esforço, as IAs precisam ser treinadas de maneira específica para essa tarefa. O interessante neste estudo foi a demonstração de que modelos de IA se tornaram muito mais eficazes em detectar esses rostos ilusórios após serem treinados para reconhecer faces de animais. Essa perspectiva levanta a hipótese de que há um componente evolutivo envolvido – uma vez que, durante a evolução, identificar rostos de animais poderia significar sobrevivência.
Segundo Mark Hamilton, principal autor do estudo e doutorando em engenharia elétrica e ciência da computação no MIT, os rostos ilusórios que vemos, neste fenômeno chamado de pareidolia, podem não ter surgido apenas da nossa sociabilidade, mas de algo mais profundo. O instinto de detectar faces de animais poderia ter sido crucial para que nossos ancestrais pudessem, por exemplo, perceber um predador à espreita ou entender o movimento de uma presa. Dessa forma, a capacidade de ver rostos em objetos não é apenas uma peculiaridade moderna, mas uma característica evolutiva que nos permitiu sobreviver em ambientes desafiadores.
A “zona cachinhos dourados” da pareidolia
Outro aspecto importante explorado no estudo foi a descoberta do que os pesquisadores chamaram de “Zona Cachinhos Dourados”. Essa expressão é emprestada da história de “Cachinhos Dourados e os Três Ursos”, onde a personagem encontra um equilíbrio ideal (por exemplo, nem muito quente, nem muito frio) em diversas situações.
A pesquisa apontou que há um nível de complexidade visual que favorece a ocorrência de pareidolia. Esse “ponto ideal” se encontra em imagens que possuem uma quantidade intermediária de detalhes visuais: muito simples e elas não são interpretadas como rostos; muito complexas, e o excesso de informações transforma-se em ruído visual.
Essa “Zona Cachinhos Dourados” revela que tanto humanos quanto IAs estão mais propensos a detectar rostos ilusórios quando as imagens têm a quantidade certa de detalhes. Isso sugere que a complexidade visual influencia diretamente a probabilidade de experimentarmos pareidolia. Para chegar a essa conclusão, a equipe desenvolveu uma equação capaz de modelar a percepção de rostos em objetos, permitindo prever com maior precisão os casos em que esses rostos ilusórios apareceriam.
Para estudar esses fenômenos de pareidolia, os pesquisadores do MIT criaram um vasto conjunto de dados, nomeado “Faces in Things” (Rostos em Coisas), composto por 5.000 imagens cuidadosamente selecionadas. Esse conjunto de dados supera em muito as coleções anteriores, que geralmente envolviam apenas algumas dezenas de imagens. Para reunir esse material, foram inicialmente escolhidas cerca de 20.000 imagens do banco de dados LAION-5B, e cada imagem passou por um rigoroso processo de etiquetagem.
Humanos anotaram as imagens, delimitando os rostos percebidos e respondendo a perguntas detalhadas sobre cada uma, como a emoção transmitida, a idade percebida e se o rosto era resultado de um acaso ou de uma intenção proposital. Esse trabalho minucioso permitiu à equipe entender melhor como os rostos ilusórios são interpretados por diferentes pessoas. O próprio Mark Hamilton destacou a contribuição de sua mãe, que se dedicou a ajudar na etiquetagem das imagens, mostrando que o processo foi, de fato, um esforço coletivo.
Ao estudar as diferenças entre a percepção humana e a capacidade da IA de detectar rostos ilusórios, os pesquisadores perceberam que a IA, mesmo sendo capaz de identificar rostos, o faz de uma maneira muito distinta de nós. Enquanto os humanos associam características emocionais e interpretam os rostos em objetos de forma quase automática, a IA precisa ser ajustada para reconhecer esses rostos de maneira eficaz. Isso implica que, sem o treinamento adequado, as IAs não percebem esses rostos “cartunescos” do mesmo modo que nós.
Esse estudo pode ter implicações significativas para o desenvolvimento de sistemas de detecção de rostos em várias áreas. Em aplicações como carros autônomos, a habilidade de distinguir rostos ilusórios de rostos reais pode ajudar a reduzir falsos positivos e melhorar a interação com humanos. Além disso, o estudo pode ter um impacto em áreas como o design de produtos, onde a compreensão da pareidolia pode ser usada para criar objetos que transmitam emoções específicas ou que evitem causar associações indesejadas.
As descobertas da equipe do MIT que permitem compreender melhor a pareidolia abrem portas para diversas aplicações práticas. Ao ajustar as IAs para detectar rostos ilusórios, os pesquisadores estão, essencialmente, replicando uma característica humana em sistemas artificiais. Isso pode ser útil em muitos projetos de interação humano-computador, em que a percepção visual precisa ser otimizada para melhorar a comunicação e a resposta dos sistemas. Nos setores como o mencionado design de produtos, essas informações também podem ser valiosas para desenvolver brinquedos que pareçam mais amigáveis ou para evitar que dispositivos médicos sejam percebidos como ameaçadores.
Além disso, o estudo lança uma nova luz sobre como nossa percepção visual se generaliza. Segundo Pietro Perona, professor de engenharia elétrica no Caltech, o trabalho sugere que as IAs podem oferecer insights valiosos sobre a maneira como processamos estímulos visuais e interpretamos o mundo ao nosso redor. Essa pesquisa pode até mesmo ensinar algo novo sobre nossa própria percepção visual e sobre como generalizamos informações que recebemos durante a vida.
Com a futura liberação do conjunto de dados “Faces in Things” para a comunidade científica, os pesquisadores esperam que outros possam continuar a explorar as nuances da pareidolia e suas implicações. Há também um interesse em treinar modelos de visão e linguagem que sejam capazes de interpretar e descrever rostos ilusórios de maneira mais humana, ampliando o potencial de interação desses sistemas com o mundo visual.
A exploração da pareidolia e de como ela é percebida por humanos e IAs traz à tona questões profundas sobre a natureza da percepção e da cognição, oferecendo uma nova perspectiva sobre o funcionamento de nossas mentes e sobre a possibilidade de criar sistemas artificiais que percebam o mundo de maneira mais próxima à nossa.
Fonte: Neuroscience News