Um novo estudo aponta a prática de sacrifícios humanos em rituais, especialmente de crianças, e oferece novas perspectivas sobre os impactos das epidemias da era colonial nas populações indígenas a partir de uma análise de DNA antigo em ruínas maias, revelando um capítulo perturbador e fascinante da história de Chichén Itzá, um dos centros mais importantes da civilização maia entre os séculos VIII e XII.
Chichén Itzá, localizada na península de Yucatán, no México, é uma das ruínas mais emblemáticas da civilização maia. A cidade é famosa por suas impressionantes construções, incluindo o templo de Kukulcán e o grande campo de jogo de bola. No entanto, ela também é notória por seus sinais evidentes de sacrifícios humanos rituais. Uma das evidências mais macabras desses rituais está na forma de uma gravura próxima ao campo de jogo, que retrata uma cabeça decapitada com sangue jorrando. Além disso, centenas de restos humanos foram recuperados do Cenote Sagrado, um enorme poço natural que funcionava como local de oferendas.
Sacrifícios de jovens em rituais
O estudo recente, publicado na revista Nature, analisou genomas extraídos dos crânios de dezenas de crianças e bebês encontrados em uma câmara subterrânea em Chichén Itzá. A pesquisa revelou que todas as vítimas de rituais eram meninos, muitos deles parentes próximos, incluindo gêmeos idênticos. Esta descoberta foi surpreendente, uma vez que não havia precedentes de sacrifícios de parentes próximos em outras cidades maias antigas.
A antropóloga biológica Oana Del Castillo-Chávez, coautora do estudo e pesquisadora do Instituto Nacional de Antropologia e História de Yucatán, destacou a natureza inusitada dessas descobertas. Enquanto os restos do Cenote Sagrado incluíam tanto meninos quanto meninas, a presença de parentes próximos entre as vítimas era inédita.
Entre os séculos VII e XII, os sacrifícios de crianças parecem ter sido eventos regulares em Chichén Itzá. No entanto, muitos aspectos dessa prática em rituais ainda permanecem obscuros. As crianças estudadas por Del Castillo-Chávez e sua equipe foram encontradas em uma câmara subterrânea chamada chultún e em uma caverna adjacente, próximas ao Cenote Sagrado. Esses locais eram parte de um santuário que foi destruído por obras de construção.
Para identificar o sexo dos restos e obter outros insights genéticos, Del Castillo-Chávez colaborou com Rodrigo Barquera, imunogeneticista, e Johannes Krause, paleogeneticista do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha. A equipe conseguiu extrair dados genéticos antigos dos crânios de 64 dos aproximadamente 106 indivíduos vítimas desses sacrifícios enterrados no chultún.
A datação por radiocarbono sugeriu que as crianças foram sacrificadas entre os séculos VII e XII. Além de revelar que todas as vítimas eram meninos, os dados genéticos mostraram que um quarto delas tinha parentes de primeiro ou segundo grau – provavelmente irmãos ou primos – entre os sacrifícios, incluindo dois pares de gêmeos idênticos. A presença de gêmeos e parentes próximos pode estar ligada a rituais envolvendo figuras gêmeas da mitologia maia.
Não está totalmente claro por que essas crianças foram selecionadas para o sacrifício nesses rituais. Análises isotópicas de seus ossos sugeriram que suas dietas, ricas em plantas como o milho, eram típicas dos antigos maias. Indivíduos relacionados tendiam a ter perfis isotópicos semelhantes, indicando que foram criados de maneira semelhante, possivelmente como parte de sua preparação para o sacrifício.
Rodrigo Barquera explicou que, para os maias, a morte e o sacrifício tinham um significado completamente diferente do que temos hoje. Para eles, ser parte desses rituais eram uma grande honra.
As crianças sacrificadas pertenciam à mesma população genética dos maias modernos de uma aldeia próxima a Chichén Itzá chamada Tixcacaltuyub. No entanto, isso não significa necessariamente que eram locais. Muitos dos sacrificados no Cenote Sagrado cresceram longe da península de Yucatán. Estudos anteriores de Del Castillo-Chávez e sua equipe indicaram que a forma dos dentes das vítimas era distinta das de outros sítios maias antigos, sugerindo que esses indivíduos poderiam ser comerciantes de longa distância que se estabeleceram em Chichén Itzá.
Os genomas das crianças oferecidas em sacrifício, que são os primeiros de maias que precedem a chegada dos europeus, também oferecem pistas sobre como as epidemias da era colonial afetaram os indígenas mexicanos. Os pesquisadores encontraram mudanças em alelos HLA, genes envolvidos no reconhecimento de patógenos, sugerindo uma possível seleção natural devido às doenças. Um alelo HLA, que se tornou mais comum, foi associado à proteção contra infecções graves de Salmonella. Estudos anteriores da equipe de Krause ligaram a bactéria Salmonella enterica sp. Paratyphi a um surto de doença no século XVI chamado epidemia de cocoliztli, que matou milhões de pessoas no México e além.
María Ávila Arcos, paleogeneticista da Universidade Nacional Autônoma do México, expressou ceticismo sobre a ligação entre S. enterica Paratyphi e a epidemia de cocoliztli. Ela sugeriu que mudanças demográficas, como a queda na população indígena devido a outros fatores, poderiam causar mudanças na abundância de certos alelos sem a necessidade de seleção natural.
A bioarqueóloga Vera Teisler espera que este estudo revele como mais de mil anos de turbulências moldaram os genomas dos maias contemporâneos. Segundo ela, este estudo é decisivamente novo e um marco para investigações mais detalhadas sobre a trajetória complexa dos maias.
As novas descobertas de DNA antigo em Chichén Itzá não apenas expandem nosso entendimento sobre os rituais de sacrifício maia, mas também fornecem valiosas informações sobre os impactos das epidemias da era colonial nas populações indígenas, oferecendo um olhar profundo e multifacetado sobre um dos períodos mais enigmáticos da história maia.
Fonte: Nature