Nossa compreensão sobre o planeta Terra tem uma nova perspectiva a partir de uma recente pesquisa, em que cientistas descobriram algo extraordinário nas lavas antigas da Ilha de Baffin, no Ártico Canadense: indícios de que hélio primordial, aprisionado desde a formação do nosso sistema solar, pode estar lentamente “vazando” do núcleo da Terra para a superfície.
Ainda que não haja nada confirmado, só as hipóteses colocam novas perspectivas sobre o entendimento científico sobre o funcionamento interno da Terra.
A Ilha de Baffin, uma terra remota coberta de rochas, neve e gelo, habitada por ursos polares, tornou-se o epicentro dessa descoberta intrigante. As lavas de 62 milhões de anos estudadas pelos geólogos revelaram proporções de isótopos de hélio extremamente elevadas. O hélio, um elemento nobre conhecido por sua reatividade quase nula, apresenta-se em duas formas principais: o hélio 3, raro e de origem estelar, e o hélio 4, mais abundante e produto do decaimento radioativo de elementos como urânio e tório.
O novo estudo, liderado por Forrest Horton, um geoquímico do Woods Hole Oceanographic Institution, levou uma equipe a uma expedição de duas semanas em 2018, em que foram coletadas amostras das lavas na Ilha de Baffin. De volta ao laboratório, eles analisaram um mineral chamado olivina, que continha microscópicas bolsas de gás hélio. Surpreendentemente, a proporção de hélio 3 para hélio 4 nessas amostras era pelo menos 65 vezes maior que a atmosférica, a mais alta já registrada em rochas terrestres.
Esses resultados sugerem uma origem mais profunda para o hélio, possivelmente vindo diretamente do núcleo da Terra, em vez de apenas do manto, como se pensava anteriormente. A presença de outros elementos, como o neônio, com proporções isotópicas peculiares, reforça essa hipótese. Essa descoberta tem implicações significativas para a formação da Terra e de outros planetas, incluindo exoplanetas.
Agora, a grande questão é: como esse gás primordial chegaria à superfície da Terra? Horton propõe que o hélio poderia inicialmente vazar das partes externas do núcleo do planeta para o manto adjacente, e posteriormente, ascenderia em uma pluma de rocha dentro do manto, derretendo ao subir, de modo que o magma resultante eventualmente entraria em erupção na superfície como lava. Essa teoria oferece uma visão rara dos processos ocorrendo na fronteira entre o núcleo e o manto da Terra, quase 3.000 quilômetros abaixo de nossos pés.
Essa descoberta também pode mudar a forma como os cientistas pensam sobre a evolução do nosso planeta. Durante os estágios iniciais da formação da Terra, hélio e outros gases podem ter sido abundantes no manto rochoso, mas a hipótese de que o hélio vaza do núcleo sugere que quase todo o hélio inicial foi perdido das partes rochosas da Terra durante as fases posteriores de “mistura convectiva” dentro do manto.
Na geologia, a mistura convectiva é o processo pelo qual o manto da Terra se movimenta e se mistura devido a diferenças de densidade causadas por variações de temperatura, contribuindo para fenômenos como a deriva continental, atividade vulcânica e a reciclagem de materiais na crosta terrestre.
A hipótese de que o hélio inicial foi perdido durante essa fase indica que o manto pode estar mais completamente misturado do que se supunha anteriormente.
Hélio vazando do núcleo da Terra?
Nem todos na comunidade científica estão convencidos. Enquanto alguns especialistas, como Cornelia Class da Lamont-Doherty Earth Observatory da Universidade de Columbia, veem esses resultados como uma forte evidência de que o hélio está vazando do núcleo, outros, como Manuel Moreira do Observatory of Sciences of the Universe da Universidade de Orléans na França, permanecem cautelosos. Moreira considera a ideia de que o hélio é armazenado e posteriormente vaza do núcleo como especulativa, embora reconheça que o estudo contribui com insights importantes sobre as origens dos gases nobres na Terra.
Essa pesquisa exemplifica o dinamismo da geologia, onde cada nova descoberta leva a mais perguntas do que respostas. Ainda não é uma resposta definitiva para o debate dentro da geoquímica sobre as origens do hélio da Terra e seus outros gases nobres, como neônio e argônio. Tradicionalmente, os geoquímicos questionam se esses gases vieram de reservatórios primordiais ou foram adicionados após a formação do nosso planeta, através da irradiação pelo vento solar ou em meteoritos ricos em hélio.
Enquanto a nova evidência sugere que os gases escapam do núcleo, Horton adverte que isso ainda não foi provado de forma absoluta. “Eu diria que ainda há muita incerteza sobre se o hélio vem do núcleo [da Terra]“, ele comenta.
Mesmo que ainda nada tenha sido confirmado, este estudo levanta mais hipóteses para que os cientistas se aproximem mais do entendimento da origem de gases nobres na Terra. A ciência avança dessa forma, diante de evidências que demandam cada vez mais esforços. Diante de tantos mistérios sobre a Terra, cada nova descoberta é uma provocação para investigações mais acuradas pelos cientistas.
Fonte: Scientific American