Algo tão natural, sentir cheiro… esconde uma complexidade e tanto! O olfato é um dos sentidos mais enigmáticos e complexos que possuímos, e por muito tempo ele permaneceu como um mistério para a ciência. Diferentemente da visão ou da audição, que podem ser facilmente descritas e compreendidas por meio de espectros de cores ou frequências de som, o cheiro não tem uma estrutura simples que possamos identificar com clareza. Uma molécula que contém uma estrutura química específica pode emitir um aroma inesperado, enquanto moléculas quase idênticas podem produzir odores completamente diferentes.
O que torna isso ainda mais fascinante é que a maioria dos cheiros que experimentamos no dia a dia, como o de café ou de frutas maduras, não vem de uma única molécula, mas de uma combinação de dezenas, às vezes centenas, de diferentes compostos aromáticos.
Esse quebra-cabeça olfativo tem desafiado os cientistas por décadas. No entanto, avanços recentes em biologia estrutural e inteligência artificial estão permitindo que pesquisadores façam progressos notáveis na decodificação do olfato. Empresas e laboratórios ao redor do mundo estão se empenhando para desvendar os segredos dos odores, tanto para entender como nossos cérebros processam o cheiro, quanto para criar novas tecnologias e aplicações baseadas no olfato. Entre os objetivos estão desde diagnósticos médicos por meio de detecção de odores até a criação de novos aromas para a indústria de fragrâncias.
No ano passado já tivemos algumas informações sobre IA sentindo cheiro. Clica aqui para ler!
Como deciframos o cheiro? O papel da IA e das molécula
A dificuldade de prever o cheiro de uma substância a partir de sua composição molecular tem sido um obstáculo para cientistas e perfumistas. Até recentemente, a análise química das moléculas fornecia poucas pistas sobre o aroma que um composto poderia ter. Duas substâncias com estruturas quase idênticas podem cheirar de maneira completamente diferente, e a química por trás de cheiros familiares, como de tomates maduros ou queijos envelhecidos, é incrivelmente complexa.
Esse problema fica ainda mais complexo pelo fato de que os seres humanos possuem cerca de 400 tipos diferentes de receptores olfativos, cada um capaz de detectar múltiplos compostos químicos. Esses receptores combinam suas respostas para formar percepções olfativas únicas, criando uma vasta gama de cheiros possíveis. Estima-se que os humanos consigam detectar até um trilhão de cheiros diferentes.
Aqui é onde a inteligência artificial entra em cena. Pesquisadores têm utilizado IA para mapear a relação entre a estrutura molecular de compostos e seus respectivos cheiros. Um exemplo é a empresa Osmo, liderada por Alex Wiltschko, que desenvolveu um modelo de IA capaz de prever aromas a partir de dados estruturais de fragrâncias. O sistema da Osmo foi treinado com milhares de descrições de moléculas extraídas de catálogos de fragrâncias, associando cada estrutura a termos sensoriais como “floral” ou “amadeirado”. Os resultados têm sido impressionantes: a IA tem se mostrado melhor do que humanos em prever como certas substâncias vão cheirar.
Em um experimento recente, um grupo de avaliadores humanos foi treinado para descrever uma variedade de cheiros usando 55 rótulos, como “frutado”, “defumado” e “doce”. Apesar de a percepção do olfato ser altamente subjetiva, a IA conseguiu identificar padrões de forma mais consistente e precisa que os participantes. Além disso, o modelo foi capaz de organizar os cheiros em categorias, como “meaty” (carnoso), “alcoholic” (alcoólico) e “woody” (amadeirado), mostrando o potencial de uma classificação mais objetiva dos cheiros.
No entanto, apesar dos avanços, ainda há um longo caminho a percorrer. Uma das principais metas dos pesquisadores é usar esses modelos para prever como misturas de compostos vão cheirar, o que pode ser crucial para inovações na criação de fragrâncias e aromas. Além disso, espera-se que, no futuro, os algoritmos possam projetar novos cheiros que imitem compostos existentes ou que sejam mais seguros e sustentáveis.
Receptores, inteligência artificial e saúde
A biologia dos receptores olfativos também está sendo desvendada, com os cientistas cada vez mais perto de entender como esses receptores se ligam a moléculas odoríferas específicas. Estudos recentes conseguiram decifrar a estrutura de alguns receptores de insetos e mamíferos, fornecendo insights sobre como o olfato funciona em diferentes espécies. Esses receptores, que estão localizados principalmente no nariz, são altamente especializados para detectar uma variedade imensa de moléculas presentes na natureza.
Um avanço significativo foi feito no ano passado, quando uma equipe de pesquisadores conseguiu publicar a primeira estrutura proteica de um receptor olfativo humano ligado a um odorante. Isso foi possível graças a novas tecnologias, como a microscopia crioeletrônica, que permitiu que os cientistas visualizassem como uma molécula de odorante se liga ao receptor e altera sua forma para enviar sinais ao cérebro.
No entanto, a diversidade de moléculas que esses receptores podem detectar é tão vasta que entender a estrutura de apenas um receptor não é suficiente para explicar a complexidade do olfato. A combinação de diferentes receptores trabalhando em conjunto cria uma rede intrincada de percepção olfativa, e os cientistas ainda estão longe de compreender completamente esse código biológico.
Paralelamente, a IA está sendo usada para acelerar a busca por novos compostos e suas correspondências com receptores olfativos. O algoritmo AlphaFold, por exemplo, tem sugerido milhares de estruturas de receptores olfativos de mamíferos, o que pode ajudar na identificação de novos compostos que possam ser usados em diagnósticos médicos ou repelentes de insetos. O olfato, ao que tudo indica, não é apenas sobre cheiros agradáveis, mas pode ser uma ferramenta poderosa para a saúde e a segurança.
Empresas como Osmo já estão trabalhando com grandes organizações, como a Fundação Bill & Melinda Gates, para descobrir e produzir compostos que possam repelir ou atrair insetos transmissores de doenças. A expectativa é que essas pesquisas levem a inovações que possam impactar significativamente o combate a doenças tropicais, como a malária.
Além disso, dispositivos de “narizes eletrônicos” estão em desenvolvimento para serem usados em diagnósticos médicos, capazes de detectar doenças como tuberculose, diabetes e câncer por meio da análise de odores corporais. Embora esses dispositivos ainda não sejam tão precisos quanto o nariz humano, o progresso contínuo na pesquisa do olfato e na tecnologia de IA promete aproximar cada vez mais as máquinas da sensibilidade olfativa biológica.
As aplicações desses conhecimentos sobre como percebemos os cheiros são vastas, mas muitas perguntas ainda permanecem sem resposta. Como exatamente o cérebro transforma os sinais químicos do nariz em uma percepção consciente de um aroma? E como podemos usar esse entendimento para manipular e melhorar nosso ambiente de forma sustentável? Apesar de termos percorrido um longo caminho, a ciência do olfato ainda está em seus estágios iniciais, e o futuro promete revelar muito mais sobre o assunto.
Fonte: Nature