Por muito tempo, o cérebro foi considerado o grande comandante solitário, protegido atrás de suas fortificações biológicas, alheio à turbulência do corpo. Imaginava-se que ele estivesse isolado, livre dos micróbios invasores e dos embates do sistema imunológico. Porém, uma onda de pesquisas recentes nos leva a repensar essa perspectiva, lançando luz sobre a verdadeira natureza de nossa biologia: o cérebro e o corpo estão intrinsecamente conectados.
Cerca de vinte anos atrás uma pergunta ficou cada vez mais presente para os cientistas: Será que o cérebro está realmente isolado? Esse questionamento começou a provocar a ciência, que tem respondido, com mais firmeza, um sonoro “não”, – uma ideia que traz consigo implicações profundas para a ciência e o cuidado com a saúde.
A interação do cérebro com doenças corporais
Doenças como o Parkinson e a esclerose lateral amiotrófica, antes vistas como enfermidades do cérebro em si, revelam agora suas raízes em um solo mais vasto diante de estudos que sugerem que as comunidades microbianas que habitam nosso intestino podem ter um papel no desenrolar dessas condições neurológicas. Este fato nos obriga a considerar a possibilidade intrigante de que o cérebro é influenciado por uma rede de comunicações que se estende além das células neuronais.
Infecções, que tanto comprometem nossa saúde física, podem também ter uma contribuição em doenças como Alzheimer ou no desenvolvimento de transtornos do espectro autista durante a gravidez. Estas associações que emergem ampliam nossa compreensão sobre como eventos aparentemente periféricos podem estar mais relacionados do que imaginávamos.
Esta via de mão dupla entre o cérebro e o corpo é mostrada em diversos aspectos. O desenvolvimento de uma febre, uma resposta tão comum quanto desconcertante, é na verdade influenciado por um conjunto de neurônios que controlam nossa temperatura e apetite. Um experimento com camundongos revelou que a estimulação de certas regiões cerebrais pode desencadear uma espécie de “memória corporal” de inflamações passadas, reativando antigas respostas imunológicas.
O câncer parece também se entrelaçar com o sistema nervoso para crescer e se espalhar, utilizando as próprias estradas nervosas que deveriam servir de comunicação e integração para se desenvolver. Um estudo publicado na revista Nature mostrou como alguns cânceres cerebrais fortalecem conexões com neurônios para facilitar seu progresso.
Em outro estudo, pesquisadores exploraram como a via neural que se projeta do coração ao tronco cerebral pode causar uma queda na pressão sanguínea e até desmaios.
Diante de tantas descobertas, a neurociência se encontra em um momento de transição, percebendo que o cérebro é parte de um sistema muito mais interconectado. Para realmente compreender essas relações complexas, é necessário um esforço colaborativo entre diversas áreas da ciência.
Métodos não invasivos, como a imagem por ressonância magnética funcional (fMRI), oferecem uma janela para observarmos essas interações em tempo real, nos aproximando cada vez mais de uma compreensão holística da saúde humana.
A interconectividade do cérebro e do corpo abre um caminho para muitas possibilidades promissoras para a medicina. Se algumas condições cerebrais começam fora do cérebro, terapias direcionadas ao cérebro mas que atuam a partir de outros órgãos, como o sistema digestivo, podem ser desenvolvidas, o que pode representar tratamentos menos invasivos e mais fáceis de administrar, evitando a barreira hematoencefálica, que é a primeira linha de defesa do cérebro contra patógenos.
Emoções e o potencial da recuperação
Além disso, o poder dos nossos estados emocionais e do humor na recuperação de doenças está sendo seriamente considerado, sugerindo que estímulos cerebrais em áreas associadas à recompensa e positividade podem melhorar a recuperação de eventos como, por exemplo, ataques cardíacos. Este seria outro aspecto que colaboraria para uma medicina mais personalizada.
Outro aspecto que parece ser bastante importante diz respeito a ajustes comportamentais, como a redução do estresse, que pode oferecer melhorias tangíveis à nossa saúde física. Se o cérebro e o corpo realmente estão conectados é fundamental pensar o ser humano de maneira integral para o bem-estar e a cura.
Uma coisa importante para os neurocientistas é que a investigação do cérebro precisa ser ampliada, sendo imperativo explorar além de suas células e sinapses. Da mesma forma, para os médicos e profissionais de saúde, não é prudente negligenciar a influência que o cérebro exerce em uma miríade de condições em outras partes do corpo, desde infecções leves até a obesidade crônica.
Este é um momento de expansão e integração na ciência e na saúde, onde as barreiras entre disciplinas se dissolvem na busca por um entendimento mais completo do ser humano. Avançar no entendimento na ligação entre o cérebro e o corpo tem o potencial de transformar radicalmente a abordagem terapêutica mais personalizada para uma variedade de condições.
Fonte: Nature