A formação de memórias longas é um processo que captura a imaginação atrai cientistas e leigos curiosos para entender a mente humana. Recentemente, um estudo realizado em ratos, revelou que esse processo é ainda mais complexo e fascinante do que se pensava anteriormente.
Publicado na revista Nature, este estudo desvenda um mecanismo surpreendente pelo qual as memórias duradouras são formadas: a quebra e subsequente reparo do DNA nas células cerebrais.
Quando pensamos em quebras de DNA, geralmente as associamos a condições adversas ou doenças, como o câncer. Contudo, esse estudo propõe que, no contexto da formação de memórias, a quebra de DNA não é apenas normal, mas essencial. Durante momentos de intensa atividade elétrica no cérebro, como os que ocorrem durante a aprendizagem, algumas células cerebrais experimentam quebras em ambas as fitas da molécula de DNA, e o que se segue disso é uma resposta inflamatória, que não só repara esses danos, mas também ajuda a solidificar a memória.
Esse processo lança luz sobre uma dimensão até então pouco explorada da neurociência, sugerindo que a formação de memórias é uma operação arriscada, que envolve mecanismos biológicos complexos. Li-Huei Tsai, neurobióloga do Massachusetts Institute of Technology, que não participou do estudo, descreve essas descobertas como extremamente emocionantes, destacando a ideia de que formar memórias é um “negócio arriscado“.
Além disso, o estudo oferece uma perspectiva intrigante sobre doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer. Jelena Radulovic, coautora do estudo e neurocientista no Albert Einstein College of Medicine, sugere que em pessoas com essas condições, o ciclo de dano e reparo do DNA pode estar comprometido, levando a um acúmulo de erros no DNA dos neurônios.
O papel da resposta inflamatória na produção de memórias
A ideia de que o dano ao DNA está associado à memória não é nova. Em 2021, Tsai e seus colegas já haviam vinculado quebras duplas da fita de DNA no cérebro ao processo de aprendizagem, agora, com o novo estudo, aprofundando essa compreensão, explorando como essas quebras contribuem para a formação da memória. Utilizando ratos, os pesquisadores associaram um pequeno choque elétrico a um novo ambiente, de modo que, ao retornar a esse ambiente, os animais “lembrassem” da experiência e demonstrassem sinais de medo.
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Ao examinar a atividade genética nos neurônios do hipocampo — uma região chave para a memória —, os pesquisadores observaram a ativação de genes relacionados à inflamação dias após o treinamento. Eles identificaram que a causa dessa inflamação era uma proteína chamada TLR9, que normalmente desencadeia uma resposta imune a fragmentos de DNA que circulam dentro das células, e curiosamente, essa resposta imune não era uma defesa contra invasores externos, mas uma reação ao próprio DNA da célula.
A pesquisa também revelou que, em um subconjunto de neurônios do hipocampo, as quebras de DNA resistiam ao reparo, acumulando maquinaria de reparo de DNA em uma organela chamada centrossomo.
O centrossomo é uma organela encontrada nas células, que desempenha um papel fundamental na organização dos microtúbulos, estruturas que ajudam na forma e movimento da célula. Sua principal função ocorre durante a divisão celular, ajudando a formar e orientar o fuso mitótico, – um conjunto de fibras que separa os cromossomos, garantindo que cada nova célula receba uma cópia completa do material genético. Basicamente, o centrossomo assegura que a divisão celular ocorra de maneira ordenada e precisa, evitando erros na distribuição dos cromossomos.
No entanto, a observação de que a maquinaria de reparo do DNA pode se acumular nessa organela em neurônios, visto que neurônios maduros não se dividem, sugere uma função adicional ou alternativa do centrossomo nessas células especializadas do cérebro, um papel inesperado dos centrossomos, sugerindo que, além de serem essenciais para a manutenção da estabilidade genética também seriam essenciais para a formação de memórias a longo prazo.
A exclusão do gene que codifica a proteína TLR9 em ratos resultou em uma dificuldade significativa de recordar memórias de longo prazo, indicando que nosso próprio DNA atua como um sistema de sinalização para reter informações a longo prazo. Essa descoberta sugere que, durante os ciclos de dano e reparo, os neurônios podem codificar informações sobre o evento de formação da memória que desencadeou as quebras no DNA.
A complexidade desse mecanismo gera várias questões, especialmente sobre como se integra com outras descobertas relacionadas à formação de memórias. Por exemplo, estudos anteriores identificaram um grupo de neurônios no hipocampo conhecidos como engramas, que são considerados a representação física de uma única memória. Esses neurônios expressam certos genes após um evento de aprendizagem e são fundamentais para a formação de memórias. A ideia é que, quando uma nova memória é formada, ela deixa uma espécie de impressão ou traço no tecido cerebral, que pode ser reativado quando a memória é lembrada. No entanto, os neurônios observados por Radulovic e sua equipe, que apresentam inflamação relacionada à memória, são em grande parte diferentes dos neurônios engrama.
Essa distinção levanta a questão: o dano e o reparo do DNA constituem um mecanismo distinto da criação de engramas, ou são parte integrante desse processo? Tomás Ryan, neurocientista de engramas no Trinity College Dublin, aponta que o estudo oferece “a melhor evidência até agora de que o reparo do DNA é importante para a memória“, – em suas palavras. Porém, ele questiona se os neurônios estão codificando algo distinto do engrama, sugerindo que o dano e reparo do DNA poderiam ser uma consequência da criação do engrama. A formação de um engrama é um evento de grande impacto que requer uma “limpeza” subsequente significativa.
O futuro da pesquisa nesta área promete abordar como e por que ocorrem as quebras de DNA dupla-fita e se esse fenômeno também acontece em outras regiões do cérebro. A expectativa é que essa linha de investigação não apenas expanda nossa compreensão dos processos biológicos subjacentes à memória, mas também ofereça novas perspectivas sobre doenças neurodegenerativas.
Clara Ortega de San Luis, neurocientista que trabalha com Ryan no Trinity College Dublin, ressalta que os resultados trazem uma atenção necessária aos mecanismos de formação e persistência da memória dentro das células. Embora muito se saiba sobre a conectividade entre os neurônios e a plasticidade neural, o conhecimento sobre o que acontece dentro dos neurônios ainda é limitado. Este estudo marca um passo significativo na exploração desse território inexplorado.
Fonte: Nature