Você já ouviu falar em CRISPR? Trata-se de uma forma que permite a edição genética que permite que os cientistas insiram, removam ou modifiquem genes. O CRISPR ainda está em desenvolvimento, mas já é uma tecnologia que apresenta importantes resultados para tratamentos para uma série de doenças, incluindo câncer, HIV e doenças cardíacas.
A tecnologia CRISPR pode trazer apresentar muitas propostas para salvar vidas. E algumas talvez nada convencionais, como o transplante de corações de porcos para bebês.
A eGenesis, empresa de biotecnologia baseada em Cambridge, Massachusetts, está transplantando corações de porcos geneticamente modificados para bebês babuínos com o objetivo de que humanos sejam os próximos na fila.
Os testes em humanos também já estão próximos no tratamento do câncer de pele por bactérias geneticamente modificadas e já começaram, no final de junho, com o primeiro medicamento totalmente gerado por inteligência artificial!
A empresa desenvolveu uma técnica que usa a ferramenta de edição genética com a tecnologia CRISPR para realizar cerca de 70 alterações no genoma de um porco. Essas modificações, segundo a equipe, devem permitir que os órgãos do animal sejam transplantados com sucesso para pessoas.
Agora, caso você esteja se perguntando por que raios eles estão fazendo isso, aqui está: eles têm como objetivo auxiliar bebês com graves defeitos cardíacos, dando-lhes mais tempo para esperar por um coração humano.
Antes que essa tecnologia chegue nesse estágio, a equipe da eGenesis pretende praticar a técnica em 12 bebês babuínos. Até agora, duas cirurgias desse tipo foram realizadas, mas, infelizmente, nenhum animal sobreviveu por mais que alguns dias.
Embora os resultados iniciais possam parecer desanimadores, a empresa se mantém otimista. E com razão, considerando o histórico da medicina com as novas possibilidades trazidas pelo avanço da tecnologia. Muitos dos primeiros receptores de transplantes de fígado também não sobreviveram, mas milhares de pessoas se beneficiaram desses transplantes desde então.
Os riscos dessa tecnologia e os avanços para a medicina
A fila de espera por um transplante de órgãos nos Estados Unidos é longa e angustiante. Mais de 100 mil pessoas aguardam essa chance de continuar vivendo, enquanto cerca de 17 pessoas por dia não resistem à espera. Em busca de alternativas para esse problema, pesquisadores têm explorado outras formas de tecnologia, como opções de bioimpressão de órgãos ou o crescimento de novos órgãos dentro do corpo humano. O transplante de órgãos de animais para humanos é chamado xenotransplante, e tem estado sob os olhares atentos dos pesquisadores.
Na verdade, o xenotransplante não é tão novo assim. As primeiras experimentações do datam do século XVII, tendo avançado de maneira significativa nas décadas de 1960 e 1990.
Mas por que porcos? Bom, os primatas, embora mais próximos de nós geneticamente, apresentam uma série de desafios. Eles são seres inteligentes, emocionalmente complexos, se reproduzem lentamente e têm maior chance de transmitir vírus nocivos. Além disso, há questões éticas que limitam sua utilização em pesquisas. Já os porcos, por outro lado, são criaturas com as quais estamos bastante familiarizados, possuem órgãos de tamanho compatível com os nossos e podem ser criados em larga escala.
Existem muitos desafios envolvidos, e o maior deles é a rejeição: nosso sistema imunológico é projetado para combater tudo que considera estranho, o que inclui órgãos de outros animais, mesmo que geneticamente modificados.
E há outro aspecto preocupante: o risco de transmissão de vírus. Mesmo que o animal doador não esteja infectado, ele pode ter “retrovírus endógenos” – códigos genéticos de vírus antigos que foram incorporados em seu DNA ao longo de milênios. Esses vírus geralmente não afetam seus hospedeiros animais, mas há uma chance de que eles causem infecções em outra espécie.
Neste cenário, a eGenesis está utilizando a tecnologia CRISPR para enfrentar esse desafio. “Podemos usar o CRISPR-Cas9 para inativar as 50 a 70 cópias de retrovírus no genoma“, diz Mike Curtis, presidente e CEO da eGenesis. Segundo ele, as edições genéticas impedem que os retrovírus se repliquem.
Para reduzir a probabilidade de rejeição, os cientistas da empresa realizam uma série de outras modificações genéticas nos porcos, desativando genes cujos produtos proteicos acionam respostas imunes prejudiciais nos humanos. Além disso, a equipe introduz sete genes humanos, o que, acreditam, deve minimizar a chance de rejeição.
Sabe como eles fazem isso? Lembram da ovelha Dolly, o primeiro animal clonado a partir de uma célula adulta nos anos 90? Pois é, a eGenesis está usando uma tecnologia semelhante. Eles realizam as edições genéticas em fibroblastos de porcos, células encontradas no tecido conjuntivo, e depois colocam os núcleos dessas células editadas em óvulos de porcos. Após a fertilização, os embriões resultantes são implantados no útero de uma porca adulta e, eventualmente, leitões clonados são entregues por cesariana.
Os porcos que não tiverem seus órgãos utilizados serão minuciosamente estudados, afirma Curtis. A empresa precisa entender como as inúmeras edições genéticas que implementam afetam um animal ao longo de sua vida, e se os genes humanos continuam a ser expressos ao longo do tempo.
Por falar nisso, edições genéticas são grandes aliadas não só para nossa saúde, mas também para o meio ambiente. Você pode ver mais sobre o assunto clicando aqui.
Complicações no caminho: a difícil jornada do xenotransplante
No complexo mundo dos transplantes de órgãos, cada detalhe importa, inclusive o tamanho. Cirurgiões precisam garantir a compatibilidade entre o tamanho do coração do doador e o do receptor. No caso de bebês babuínos, que são pequenos, somente corações de porcos com um a dois meses de idade são adequados para transplante, explica Curtis. Uma vez transplantados, espera-se que esses corações cresçam junto com os babuínos.
Contudo, existem muitos obstáculos. O primeiro babuíno a receber um coração de porco, que tinha menos de um ano de idade, infelizmente veio a óbito no dia seguinte à cirurgia. “Foi uma complicação cirúrgica“, diz Curtis. O tubo intravenoso, que fornecia fluidos essenciais para o babuíno, ficou obstruído, levando à necessidade de eutanásia do animal.
Alguns meses depois, a equipe realizou a cirurgia em um segundo babuíno. Nessa ocasião, os cirurgiões não conseguiram manter as conexões entre os vasos sanguíneos do babuíno e os do órgão suíno. O babuíno morreu nove dias após a operação.
Entretanto, Curtis relatou que os cirurgiões estão confiantes diante do aspecto positivo desses acontecimentos infelizes. Os casos de insucesso foram relativos a complicações cirúrgicas, mas os corações apresentavam um bom desempenho cardíaco em ambos.
Decisões Difíceis: Os próximos capítulos
Após a conclusão da fase de testes em babuínos, a equipe da eGenesis pretende usar essa tecnologia para oferecer corações de porcos a bebês com menos de dois anos que nasceram com graves condições cardíacas. Estas crianças têm opções de tratamento limitadas, pois corações humanos de tamanho adequado são raros, e alguns dos dispositivos usados para tratar doenças cardíacas em adultos não servem para crianças pequenas, com corações menores.
A ideia de Curtis é que os corações de porco possam ser inicialmente utilizados como uma medida temporária para essas crianças – basicamente, dando-lhes mais tempo para aguardar um coração humano doado.
Mas a questão da ética não pode ser deixada de lado, mesmo diante dessas perspectivas otimistas com essa nova tecnologia. Os bebês não poderão dar consentimento informado para a cirurgia. Essa decisão recairá sobre o responsável pela criança, que provavelmente estará em uma situação desesperadora, diz Syd Johnson, bioeticista da Upstate Medical University em Syracuse, Nova York. “São pais desesperados por qualquer coisa que possa salvar a vida de seu filho“, diz ela.
Chris Gyngell, especialista em bioética do Murdoch Children’s Research Institute em Melbourne, na Austrália, acredita que o foco deve estar em quem tem mais a ganhar com um procedimento experimental como este: “O fato é que pacientes pediátricos têm uma maior necessidade clínica, porque existem muito menos outras opções disponíveis para eles“.
Robert Montgomery, diretor do NYU Langone Transplant Institute, que trabalhou com a empresa rival United Therapeutics, que é, ele próprio, receptor de um coração humano doado, concorda. Ele diz que apoia os objetivos da eGenesis. “Esses bebês que têm doença cardíaca congênita… têm uma taxa de mortalidade de 50%“, diz ele. “É como se fosse o arremesso de uma moeda se a criança vai sobreviver ou não.”
Porém, Syd Johnson não compartilha da mesma visão diante dessa tecnologia. Ela aponta que o procedimento é arriscado, e uma criança cujo sistema imunológico rejeite o órgão poderá sofrer: “Cem por cento dos pacientes que receberam um órgão de animal morreram logo após o procedimento – isso é um fato inescapável“. David Bennett Sr., o primeiro ser humano a receber um coração de porco geneticamente modificado, em 2022, morreu dois meses depois.
Johnson diz que embora o desejo de fazer algo para salvar bebês com condições cardíacas graves seja muito forte para todos os envolvidos, existem muitos riscos ao usar órgãos de animais geneticamente modificados e que, até certo ponto, são desconhecidos, inclusive das perspectivas de longo prazo.
Montgomery, que já transplantou órgãos de porcos geneticamente modificados em adultos que foram declarados com morte cerebral, observa que já obteve “resultados muito bons”. Ele acredita que as crianças pequenas possam ser candidatas melhores para órgãos de porcos do que os adultos, pois seus sistemas imunológicos ainda estão em desenvolvimento e, portanto, podem ser menos propensos a rejeitar o órgão.
O próximo passo será usar essa tecnologia para o transplante em um terceiro babuíno, programado para agosto. A empresa planeja realizar pelo menos uma operação desse tipo por mês até que 12 animais tenham sido operados. A equipe espera corrigir as complicações cirúrgicas e permitir que os babuínos vivam mais tempo. Alguns outros primatas que receberam rins de porcos geneticamente modificados já sobreviveram mais de um ano, revela Curtis.
Montgomery reconhece que a curva de aprendizado em algo assim é íngreme, cheia de riscos e decisões difíceis, mas que mesmo os contratempos são passos importantes que podem nos colocar cada vez mais próximos de salvar vidas.
Fonte: MIT Technology Review