Em que medida a IA Generativa pode mudar a nossa relação com a morte? Imagine um mundo onde você ainda possa conversar com sua bisavó, perguntar a Shakespeare sobre seus sonetos ou obter conselhos de moda retrô dos anos 80. Parece ficção científica, certo? Mas no mundo da inteligência artificial isso não é tão distante quanto parece.
Quando você pensa em chatbots de inteligência artificial, pode imaginar um programa simples rodando em algum servidor, esperando eternamente pela sua próxima mensagem. Mas a realidade? Essas “personas digitais“, especialmente as convincentes, são verdadeiros devoradores de recursos. Cada interação com softwares tipo o ChatGPT tem por trás uma vasta rede de tarefas e processos.
Imagine ter um gêmeo digital online. Manter essa réplica viva não é apenas garantir o tempo de atividade do servidor, é uma tarefa colossal que envolve moderadores de conteúdo sobrecarregados, anotadores de dados e uma infinidade de outras funções de retaguarda, desde gerenciar uma herança digital até garantir que essa réplica digital não comece a falar línguas desconhecidas devido a uma mudança de formato.
Há uma realidade amarga que todos nós temos que enfrentar: nada dura para sempre. Não nós, não aquela pizza deliciosa que você está guardando para mais tarde e definitivamente não as plataformas ou dispositivos digitais. Em 2008, o Virtual Eternity da Intellitar tinha a proposta incrível de criar réplicas humanas apoiadas por inteligência artificial. No entanto, em 2012, como um império de ficção científica que caiu, eles desapareceram.
Certamente, temos projetos mais avançados agora, como o LifeNaut, que aspiram criar seres humanos digitais completos combinando dados genéticos e pessoais. Mas, vamos ser sinceros: se o site deles ainda usa Flash, podemos estar a décadas de distância de tais realizações.
O dilema ético
Agora, vamos tocar em um ponto delicado. Se você pudesse criar uma réplica de um ente querido, faria isso? O jornalista Jason Fagone relatou a história de Joshua Barbeau que, para lidar com seu luto, ressuscitou sua noiva, Jessica, usando o GPT-3 da OpenAI. Embora tenha oferecido a ele algum consolo, o experimento “Jessica Bot” abriu uma série de questões entre os familiares de Jessica que não estavam de acordo com essa “reencarnação digital”.
No centro dessa discussão, encontramos uma realidade que muitos podem considerar perturbadora: a persistência e a longevidade dos chatbots geralmente estão nas mãos dos desenvolvedores e das empresas, e não dos entes queridos.
Tome o caso do Jessica Bot, por exemplo. A criação desta réplica digital foi um exercício com prazo de validade, para reduzir os custos operacionais. Joshua que usou a inteligência artificial para lidar com seu luto, tinha plena consciência de que sua interação com Jessica era uma corrida contra o tempo. Ele sabia que, eventualmente, a “bateria” do chatbot se esgotaria, simbolizando outra forma de perda.
Enquanto alguns desenvolvedores podem considerar esta “mortalidade” programada como uma forma de proteção emocional, outros veem na imortalidade digital um potencial econômico. Imagine chatbots que substituem trabalhadores humanos de forma permanente ou atores falecidos que nunca deixam de atuar.
Uma das iniciativas que trouxe o problema para o foco das discussões foi a greve dos artistas de Hollywood, que destaca o dilema dos direitos de personalidade dos atores mortos. Já temos exemplos de celebridades ressuscitadas em deepfakes, como foi o caso polêmico de Anthony Bourdain. E, em situações menos tecnológicas, há registros de professores que continuam “dando aulas” pós-morte através de palestras gravadas.
Outro aspecto bastante importante que não pode ser negligenciado é que as recriações digitais podem interferir nos empregos de trabalhadores vivos e, mais profundamente, podem agitar as emoções dos familiares dos retratados pela IA generativa. A dor da perda é amplificada quando você descobre que uma versão digital de seu ente querido foi criada sem seu consentimento ou conhecimento. É uma invasão de memória e legado.
A realidade é que a era digital nos oferece ferramentas impressionantes. No entanto, quando começamos a falar de vida e morte, a linha entre a inovação benéfica e a insensibilidade torna-se tênue. Precisamos nos perguntar: até que ponto a tecnologia deve ir? Até que ponto o progresso não compromete nossa humanidade?
Isso nos leva a uma pergunta fundamental: quem deveria ter o direito de ressuscitar alguém digitalmente? Seria a família, um antigo empregador ou empresas de tecnologia vendo oportunidades de lucro? E há uma questão ainda mais importante: como você se sentiria com a possibilidade de ser transformado em um chatbot depois de sua morte? Como seria a ideia ter uma máquina que, mesmo replicando a sua personalidade, pode dizer coisas depois da sua morte que você jamais pode saber agora em vida?
Existem ainda outros desafios além dos éticos: manter avatares digitais, principalmente em nossa era de preocupações ambientais. Os recursos necessários – água, matérias-primas, energia – nos fazem questionar a sustentabilidade de projetos assim. Aqui vai um fato rápido: dizem que o ChatGPT consome incríveis 700.000 dólares diariamente para manutenção. Se isso continuar, a OpenAI pode ter que reajustar seus investimentos em 2024.
Até que ponto a IA generativa pode substituir o real?
Com a evolução da inteligência artificial, há um debate crescente sobre os aspectos éticos da aplicação dessa tecnologia: a substituição de atores falecidos, a continuação dos legados de acadêmicos renomados, e muitas outras possibilidades.
Há também as preocupações para a família e círculo social de quem se foi. Imagine ter que navegar por pesadelos burocráticos para buscar o controle sobre uma réplica digital de um membro da família falecido. É uma verdadeira terra de ninguém!
O sonho da imortalidade apoiada pela IA generativa pode ser tão tentador quanto assustador. No entanto, como acontece com todas as coisas tecnológicas, precisamos olhar muito além do que se pode ver à primeira vista. Embora a promessa de conversar com lendas do passado ou entes queridos falecidos possa ser bem vista por alguns, a logística, ética e o custo humano que isso demanda são questões profundas e complexas.
Independente de qual seja a opinião de cada um, uma coisa é fato: seja em pixels ou carne e osso, manter alguém “vivo” por meio de IA generativa vem com muitas responsabilidades.
Para aqueles que pensam em uma vida digital após a morte, lembrem-se de que cada byte de existência dependerá dos vivos. E para essas almas vivas, o peso da eternidade pode ser pesado demais para suportar, tanto nas questões materiais como no impacto psicológico dos envolvidos.
As possibilidades que a IA generativa proporciona despertam sentimentos e opiniões diversas, e quando é um assunto tão sensível quanto a perda de um ente querido não cabe julgamento sobre as diferentes perspectivas. É preciso empatia para entender os motivos que acarretam em determinadas posições. Afinal de contas, somos seres únicos, que têm sempre uma percepção singular do mundo, logo, temos, cada um à sua maneira, uma forma de lidar com as situações difíceis da vida.
Independente do que se possa fazer com a inteligência artificial em relação a uma tentativa de driblar a dor da perda, o mais importante é que o olhar sobre isso venha com uma carga gigantesca de responsabilidade e de humanidade, – que é o que uma máquina jamais poderá ter.
Fonte: Wired