A história da genética humana é marcada por eventos que transformaram a paisagem social e cultural, deixando marcas até mesmo no nível mais essencial da nossa existência: o nosso DNA. Um desses eventos, a Peste Negra, devastou a Europa no século XIV, deixando um rastro de morte e mistério. Recentemente, pesquisadores têm se debruçado sobre a questão: a Peste Negra moldou o genoma humano?
No epicentro deste debate científico está a cidade de Cambridge, na Inglaterra, que em 1349 viu um número de mortes sem precedentes. Corpos se acumulavam em velocidade tão alarmante que os coveiros mal conseguiam dar conta do recado, resultando em enterros em massa. Essa devastação levaria qualquer um a pensar que tal evento catastrófico teria deixado suas marcas no código genético dos sobreviventes. No entanto, um estudo recente, publicado em janeiro na revista Science Advances, traz um novo capítulo a essa narrativa, desafiando conclusões de estudos anteriores e mergulhando mais profundamente nas complexidades da genética humana e da seleção natural.
Em 2022, uma pesquisa de grande repercussão publicada na Nature sugeriu que variantes de genes imunológicos foram encontradas em abundância nos indivíduos que sobreviveram à Peste Negra. Isso indicaria um possível efeito protetor dessas variantes, uma adaptação ao terrível patógeno que causou a peste. No entanto, o estudo de 2024, liderado por Ruoyun Hui, e Toomas Kivisild, ambos geneticistas populacionais da Universidade de Cambridge, no Reino Unidod, traz um contraponto importante. Analisando os genomas de 275 pessoas de Cambridge, da era medieval e pós-medieval, a pesquisa não encontrou evidências substanciais que apoiassem uma adaptação das respostas imunológicas aos horrores daquela época.
O genoma humano carrega cicatrizes de surtos de doenças ancestrais, evidências de que variantes genéticas ajudaram nossos antepassados a sobreviver a infecções, transmitindo essas variantes benéficas aos seus descendentes. Porém, estabelecer uma ligação direta entre essas mudanças e surtos de doenças específicos, como a Peste Negra, é um tremendo desafio. A seleção natural tende a agir ao longo de muitas gerações, e o impacto de um único surto de doença pode ser difícil de discernir, especialmente com o número limitado de genomas humanos antigos disponíveis para estudo.
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As inconclusões da análise genética do pós-Peste Negra
A equipe de Hui e Kivisild debruçou-se sobre este quebra-cabeça genético e, em uma amostra de 70 genomas completos, encontrou poucos sinais de seleção natural pós-Peste Negra. Apenas cerca de 10% das 245 variantes imunológicas identificadas no estudo de 2022 mostraram uma mudança de frequência. Especificamente, não houve uma mudança significativa na frequência das variantes do gene ERAP2, que o estudo anterior havia ligado à proteção contra a peste.
Esses resultados lançam uma sombra de dúvida sobre a ideia de que a Peste Negra teve um impacto duradouro e direto na genética humana. A descoberta de que uma variante de outro gene, que protege contra a lepra, se tornou um pouco mais comum após a Peste Negra, é intrigante mas não atende aos limiares estatísticos normalmente aplicados em estudos genômicos, o que nos leva a um terreno de cautela e especulação científica.
No entanto, a controvérsia e o debate são a força vital da ciência. O geneticista de populações humanas da Universidade de Chicago, no Illinois, Luis Barreiro, líder do estudo de 2022, que analisou centenas de genomas antigos de pessoas de Londres e da Dinamarca, defende suas descobertas, destacando especialmente o papel do gene ERAP2. Estudos epidemiológicos separados e modelos de aprendizado profundo analisando dados de genomas antigos encontraram indícios de que as variantes do ERAP2 estiveram sob seleção nos últimos 2.000 anos, um período que inclui não apenas a Peste Negra, mas também outras epidemias de peste.
A questão central desse debate gira em torno das escalas de tempo. Uma única epidemia pode realmente deixar uma marca genética significativa, ou seriam necessárias epidemias repetidas ao longo de muitas gerações para provocar uma mudança evolutiva mensurável? Iain Mathieson, um geneticista populacional da Universidade da Pensilvânia, sugere que epidemias repetidas e pandemias poderiam, de fato, ter um impacto maior.
Para resolver esse enigma da história genética humana, os pesquisadores concordam que serão necessários milhares de genomas humanos antigos e, possivelmente, mais. Como Barreiro aponta, uma resolução definitiva que satisfaça a todos pode estar ainda distante, aguardando um aumento significativo no tamanho das amostras e refinamento nas metodologias analíticas.
Os cientistas continuam na busca por clareza quanto ao legado da Peste Negra. Por ora, é uma página parcialmente escrita na história da nossa evolução genética.
Fonte: Nature