Tanto a física clássica quanto a quântica tentam responder uma questão fundamental: Nosso universo, com suas vastas galáxias e enigmas, está predestinado ou é o produto de um acaso cósmico? Esta pergunta é uma das mais profundas de várias áreas do conhecimento, e é fortemente presente na física moderna.
Contrariando a ideia popular de que a física quântica implica um universo regido pelo acaso e pela incerteza, existe uma corrente de pensamento que argumenta justamente o oposto. Pode parecer surpreendente, mas essa perspectiva sugere que o universo quântico pode ser, de fato, mais determinístico do que imaginávamos.
Albert Einstein, uma das mentes mais brilhantes da história da ciência, certa vez ponderou sobre a natureza do universo. Em uma conversa com o matemático Ernst Strauss, ele questionou: “O que realmente me interessa é saber se Deus poderia ter feito o mundo de uma maneira diferente; ou seja, se a necessidade de simplicidade lógica deixa alguma liberdade“. Esta reflexão de Einstein toca no cerne de nossa curiosidade sobre o universo: ele poderia ter sido diferente do que é?
Avançando no tempo, encontramos James Hartle, um físico dos Estados Unidos cujo legado na ciência continua a inspirar. Falecido aos 83 anos, no começo deste ano, Hartle deixou contribuições seminais para esse debate contínuo. No início do século XX, a teoria quântica parecia ter desmantelado a noção clássica de um universo determinístico. No entanto, Hartle participou de uma proposta notável que, se correta, inverte completamente a narrativa convencional sobre o determinismo.
Na física, o determinismo é a ideia de que o estado do universo em um determinado momento, juntamente com as leis básicas da física, define tanto a história passada quanto a evolução futura do universo. Essa ideia atingiu seu ápice com as leis rigorosas e precisas da física clássica. Pegue, por exemplo, as leis do movimento de Isaac Newton que dizem que se alguém conhecesse as posições e momentos atuais de todas as partículas, poderia, em teoria, usar tais leis do movimento para deduzir todos os fatos sobre o universo, passado e futuro. É apenas a falta de conhecimento (ou poder computacional) que impede os cientistas de fazer isso.
Essa capacidade preditiva distintiva do determinismo sustenta explicações científicas que se aproximam do princípio da razão suficiente, articulado pelo polímata alemão Gottfried Leibniz: que tudo tem uma explicação. Cada estado do universo (com uma exceção óbvia, que abordaremos mais tarde) pode ser completamente explicado por um anterior. Se o universo é um trem, o determinismo diz que ele está correndo em um trilho, sem opção de mudar para outro caminho, pois trilhos diferentes nunca se cruzam.
No entanto, os físicos têm sido tradicionalmente fãs do poder preditivo e explicativo do determinismo. Os filósofos, por outro lado, estão mais divididos, principalmente por causa de como o determinismo parece excluir o livre arbítrio humano: se as leis da física são determinísticas e nossas ações são apenas a soma de interações de partículas, parece não haver espaço para escolhermos livremente A em vez de B, porque os estados anteriores do universo já teriam determinado o resultado de nossa escolha.
E se não somos livres, como podemos ser elogiados ou culpados por nossas ações? O livro de 2023 do neuroendocrinologista Robert Sapolsky, “Determined”, toca nessa questão fascinante e controversa.
Em outro post também lançamos um olhar quântico não sobre o universo, mas sobre a Terra! Clica aqui para ver!
Entre probabilidade e determinismo
No coração da física moderna, jaz o enigma que transcende as fronteiras entre o palpável e o abstrato, o determinado e o aleatório. Este enigma é a mecânica quântica, uma área da ciência que, desde o século XX, tem desafiado nossa compreensão do universo e de suas leis fundamentais, introduzindo um novo paradigma: ao invés de certezas absolutas, a mecânica quântica oferece probabilidades. Mas será que este universo quântico é mais determinístico do que supúnhamos inicialmente?
O experimento mental do gato de Schrödinger, concebido em 1935 pelo físico austríaco Erwin Schrödinger, ilustra essa natureza probabilística de forma fascinante. Imagine um gato preso numa caixa com um frasco de veneno, que pode ou não ser quebrado por um evento aleatório, como a decomposição radioativa. Neste cenário, dentro da física quântica, o gato seria descrito por uma “função de onda” em superposição dos estados “vivo” e “morto”. A função de onda, ao ser medida, “salta” aleatoriamente para um desses estados, e a mecânica quântica especifica apenas a probabilidade de cada possibilidade ocorrer. Portanto, inicialmente, parecia que a chegada da mecânica quântica eliminava a noção de determinismo.
Contudo, a história aceita até então pode não ser completa. Desenvolvimentos na segunda metade do século XX sugeriram que o universo quântico pode ser, de fato, mais determinístico que um universo clássico, e isso por duas razões principais, sendo a primeira delas, a técnica. As leis de Newton permitem situações em que o passado não determina completamente como as coisas se moverão no futuro. Por exemplo, essas leis não limitam a aceleração de um objeto, teoricamente permitindo que um objeto clássico alcance o infinito espacial em um tempo finito. Invertendo este processo, temos os chamados “invasores do espaço” — objetos que surgem do infinito espacial sem conexão causal com qualquer outra coisa no universo, desafiando a previsibilidade do determinismo.
Esta problemática é parcialmente resolvida pela teoria da relatividade especial de Einstein, que introduziu um limite de velocidade universal: a velocidade da luz. No entanto, infinitos indisciplinados também são um problema na relatividade de Einstein, uma teoria clássica. As equações da relatividade geral conduzem a “singularidades” de curvatura infinita, mais notoriamente em buracos negros e no Big Bang, no início do universo. As singularidades são como lacunas no espaço-tempo onde a teoria deixa de se aplicar, ou seja, em alguns casos, qualquer coisa pode emergir delas (ou desaparecer nelas), ameaçando o determinismo.
Muitos físicos acreditam que a teoria quântica pode vir para resolver o problema, removendo tais singularidades, transformando, por exemplo, o Big Bang em um “Big Bounce” (grande salto ou rebote, em tradução livre), com um universo que continua a evoluir suavemente do outro lado da singularidade. Se estiverem corretos, uma teoria da “gravidade quântica”, que unifique completamente a teoria quântica, predizendo o comportamento da matéria nas menores escalas, e a relatividade de Einstein, que engloba a evolução em larga escala do universo, poderia suavizar as lacunas no espaço-tempo e restaurar o determinismo.
Mas existe uma razão ainda mais profunda pela qual o universo quântico pode ser mais determinístico…
Cosmologia quântica e o destino do universo
Adentrando ainda mais nas profundezas do cosmos quântico, encontramos figuras emblemáticas como Stephen Hawking e James Hartle, que se destacaram como precursores da cosmologia quântica. Essa fascinante disciplina estende a teoria quântica para abarcar o universo em sua totalidade, trazendo novas perspectivas sobre a origem e a evolução do cosmos.
Na concepção clássica do universo, existe uma liberdade intrigante em escolher como tudo começou. A mecânica clássica, embora determinística em sua natureza, apresenta uma multiplicidade de histórias evolutivas possíveis para o universo, oferecendo uma série de declarações condicionais: se isso acontecer, então aquilo deve acontecer em seguida.
Voltando à analogia do trem, a teoria determinística não explica, por si só, por que o trem está em um determinado trilho dentre muitos outros possíveis. Podemos retroceder aos estados anteriores para explicar o estado atual e continuar fazendo isso até o estado inicial – mas este estado inicial não é explicado por nada que o preceda. Portanto, o determinismo padrão falha em satisfazer completamente o princípio da razão suficiente de Leibniz: quando se trata do estado inicial, algo permanece sem explicação.
Essa falha não é apenas filosófica, mas tem implicações práticas significativas. Uma teoria completa do universo deve ser capaz de prever os fenômenos que observamos nele, incluindo sua estrutura em larga escala e a existência de galáxias e estrelas. No entanto, as equações dinâmicas que temos, seja da física newtoniana ou da relatividade einsteiniana, não conseguem realizar essa tarefa sozinhas. Os fenômenos que observamos dependem sensivelmente das condições iniciais do universo. Assim, devemos olhar para o que vemos ao nosso redor no universo e usar essa informação para determinar a condição inicial que poderia ter dado origem a tais observações.
É aqui que entra o conceito de “determinismo forte”, cunhado por Roger Penrose em seu livro de 1989, “The Emperor’s New Mind”. Esse tipo de determinismo não se trata apenas de o futuro ser determinado pelo passado, e sim de que toda a história do universo estaria fixada, de acordo com um esquema matemático preciso, para todo o sempre. Um universo é fortemente determinístico se suas leis básicas da física fixarem uma história cósmica única. Se o determinismo tradicional fornece um conjunto de trilhos de trem que não se cruzam, sem especificar qual deles está sendo usado, então o determinismo forte estabelece um único trilho, que não tem escolha nem mesmo sobre onde começa.
Esta perspectiva desafia nossa compreensão do universo…
A função de onda da física quântica
A implementação do determinismo forte na física clássica revela-se uma tarefa árdua, principalmente devido à complexidade inerente ao estado inicial do universo. Com a mecânica quântica surgindo como uma luz no fim do túnel, aparecem possíveis soluções para esses enigmas aparentemente insolúveis.
James Hartle propôs que a mecânica quântica poderia simplificar a complexidade do universo através da função de onda de um objeto quântico, que se espalha por diversos estados clássicos, sendo possível conceber uma condição inicial simples que abarque estruturas complexas emergentes nas superposições quânticas. Essa abordagem transforma a complexidade observada no universo em descrições parciais de uma realidade fundamental mais simples: a função de onda do universo, análoga a uma esfera perfeita dividida em fragmentos de formas complexas que, se reunidos, formam novamente a esfera perfeita.
Em 1983, Hartle e Hawking introduziram a ideia revolucionária da função de onda “sem limites” para o estado inicial do universo. Neste modelo, a forma do universo é comparada a uma peteca: em relação ao passado, arredonda-se suavemente e encolhem até um ponto único. Como Hawking afirmou em uma palestra sobre a origem do universo, no Vaticano, em 1981: “Deveria haver algo muito especial sobre as condições-limite do Universo, e o que pode ser mais especial do que a condição de não haver fronteira?”
Nesta perspectiva quântica, o universo é regido por duas leis básicas: uma lei determinística de evolução temporal e uma lei simples que escolhe a função de onda inicial do universo. Assim, o universo quântico satisfaz o conceito de determinismo forte, com uma história cósmica única permitida pelas leis físicas, descrita por uma função de onda que superpõe muitas trajetórias clássicas. Não há contingência no que o universo como um todo poderia ter sido, nem possibilidade alternativa para como ele poderia ter começado. Cada evento, incluindo o primeiro, é explicado; a função de onda inteira do universo para todos os tempos é definida pelas leis. As probabilidades oferecidas da mecânica quântica não existem no nível das leis físicas básicas, mas por outro lado podem ser atribuídas a descrições grosseiras e parciais de pedaços do universo.
A abordagem “sem limites” traz um poder preditivo e explicativo mais robusto, dando espaço para previsões de um universo inicial relativamente simples e para a ocorrência da inflação – um período de rápida expansão que o universo parece ter sofrido em seus primeiros instantes.
Apesar de seu potencial, essa proposta enfrenta desafios significativos. Estudos recentes sugerem que a teoria pode não definir uma função de onda única para o universo. Contudo, estudos nas fundações da mecânica quântica oferecem métodos alternativos para implementar o determinismo forte, considerando a ideia de que os estados quânticos de sistemas fechados, incluindo o universo, podem não estar restritos às funções de onda, mas podem provir de uma categoria mais ampla: o espaço das matrizes de densidade.
Uma teoria definitiva?
As matrizes de densidade são vistas como “superposições de superposições”, o que abre novas perspectivas para a condição inicial do universo. Esta abordagem ampliada nos oferece um panorama mais rico sobre como o universo pode ter começado.
Um conceito intrigante é a “hipótese do passado”, que propõe que o universo começou em um estado de baixa entropia, com a entropia aumentando constantemente desde então. Se esta teoria corresponder a um conjunto de funções de onda, poderíamos escolher uma matriz de densidade simples que represente uma mistura uniforme desse conjunto. Aqui, a matriz de densidade é vista como o estado inicial do universo, e se aceitarmos que ela é determinada por uma lei, juntamente com a equação determinística de von Neumann (uma generalização da equação de Schrödinger), então estamos diante de uma realização do determinismo forte.
No entanto, essa abordagem não leva a um universo unidirecional, mas a um “multiverso” quântico com múltiplos ramos evolutivos. E a questão que surge é: quão determinístico é, de fato, o universo? A resposta a esta pergunta depende da teoria final que unirá a física quântica e a relatividade — um objetivo ainda distante.
Conforme sugerido por Hartle, do ponto de vista quântico, o universo pode ser mais determinístico do que acreditávamos anteriormente, oferecendo explicações mais robustas e melhores previsões. Isso tem implicações significativas, inclusive para a compreensão do livre arbítrio. Se o universo quântico é fortemente determinístico, então não há outro caminho para a formação do universo senão o que temos, o que desafia a ideia de que a teoria quântica poderia ser usada para defender a noção de livre arbítrio.
As leis últimas do cosmos quântico podem revelar por que o universo existe em sua forma atual, sugerindo uma reversão na história convencional do determinismo. Assim, no cerne da física quântica, encontramos mais do que novas hipóteses, mas também novas perguntas sobre nossa própria existência e lugar no universo. Este é um campo de estudo que continua a desafiar nossas concepções mais profundas sobre realidade, tempo e destino.
Fonte: Nature