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Inteligência Artificial e direitos autorais: Quem é o autor?

As questões de direitos autorais e inteligência artificial na arte são controversas. Bom, verdade seja dita, bem longe de ser só na arte. Mas o problema da autoria nessa nova realidade tem me deixado intrigada. Quem é o autor dos produtos das IAs generativas? E eu já vou jogar um balde de água fria em você que está lendo isso: Eu não vou responder. Eu nem poderia, ainda que quisesse muito. E vou explicar ao longo deste artigo o porquê. 

Mas então, como resolvemos todos aqueles problemas de direitos autorais, de usos indevidos? Pois é… eu também não vou oferecer a melhor solução.

Mas mesmo sem respostas, humildemente, quero trazer algumas questões para a pauta do dia. Porque é preciso. Porque é urgente.

Créditos da imagem: Kauê Peinado para Futuro Relativo

Vou por partes, tentando, sinceramente, pensar algum caminho para abordar essa questão. 

…Já estou suando frio antes de começar! Mas vou tentar, passando por alguns pontos principais:

Criatividade do ser humano x criatividade da inteligência artificial

Quando penso em arte, quase que instantaneamente me vem “criatividade” à mente. E por isso acho importante começar por aí. 

Comumente atribuímos ao conceito de criatividade um caráter de ineditismo e singularidade. 

A partir da ontologia de Heidegger, depreendo uma ideia que poderia ser atribuída suficientemente ao termo, quando ele fala do artista como alguém que “devela” o Ser. Embora possamos identificar uma singularidade intrínseca ao ato de trazer uma obra à existência nesse processo de desvelamento, a meu ver, é mais.

Criatividade, portanto, seria mais que um “desvelar” , mais do que uma forma de trazer à luz algo que estava anteriormente oculto. De onde eu vejo, a criatividade parte do desvelamento e o ultrapassa quando interpreta singularmente o mundo e até o próprio ser

No âmbito da arte, quando pensamos em alguém criativo, pensamos em um ser iluminado, que tem o dom de interpretar o mundo de uma forma particular e, ainda mais incrível, tem o dom de expressar os sentidos ímpares da sua percepção.

Acredito ainda que para haver criatividade existe um caráter conexionista entre produção da obra e um conjunto de experiências e referências. Quanto mais acumulamos repertório de fontes variadas durante nossa vida, tanto mais a criatividade é estimulada. A fonte do repertório pode ser comum a muitas pessoas, mas cada um, enquanto ser único, tem também uma interpretação única. E eu acho que é daí que a criatividade nasce.

Mas pera lá…

…Se a criatividade é uma associação de experiências e referências, isso não se dá também na inteligência artificial generativa, já que o que é chamado de criatividade na IA é a associação de dados disponíveis em seu repositório? Tipo assim: As experiências estão para o homem tal como o repositório de dados está para a máquina em um processo de criação através de associação de referências. Eita! O conceito de criatividade aqui encrencou um pouco.

Portando, na inteligência artificial generativa, essa criatividade se dá por meio de algoritmos, que são conjuntos de regras em linguagem computacional para atender determinada necessidade, no caso aqui, a imagem digital, a obra digital. Esses algoritmos são programados para aprender por padrões, e executar os parâmetros de associações através da exposição a dados, resultando em uma imagem digital inédita. O processo generativo parece se dar por associação semântica das palavras, fazendo com que ela busque em seu banco de dados os padrões mais prováveis para atender ao sentido das nossas solicitações.

no humano, acredito ser impossível identificar padrões unívocos para as associações ou qualquer forma “engessada” de pensar que sirva para definir o que é um processo criativo de forma definitiva. Não parece existir aqui o termo que ouvi (e amei, porque define muito!) do Álvaro Machado Dias: uma algoritmização do pensamento.

Ora, ora… Parece que está aí a diferença da criatividade humana para a da inteligência artificial. A criatividade da máquina opera a partir de um processo pré-estabelecido e a do ser humano parece ser algo livre de padrões. Não me convence a história de ter um processo criativo que funcione invariavelmente para qualquer pessoa. 

E se a máquina é abastecida por dados que originalmente vieram de experiências e de obras humanas… quem é o autor de fato? Essa pergunta não parece ser tão fácil de ser respondida. E o que vou falar vai parecer muito louco, mas essas discussões apontam grandes problemas, justamente porque existe divergência na conceituação do objeto da discussão. Eu acho que aqui o problema central está na palavra “autor“. Não parece que é esse o problema, né? Mas eu acredito que pensar por aí é um começo, viu… 

E para descobrir quem, antes precisamos entrar em um consenso sobre O QUE é um autor.

O que é um autor?

Eu não tinha me atentado para o tamanho da encrenca até um professor de lógica me provocar com perguntas como essas: Quem é o autor da Bíblia? Quem é o autor da Ilíada e Odisséia? Quem é o autor de Alice no País das Maravilhas? Quem é o autor do triângulo? Quem é o autor de uma constituição? Quem é o autor da beleza? Quem é o autor da sua vida? 

Ingênua que só, achei que, eu não podendo dar uma resposta suficiente, ele responderia. Mas bastou a segunda pergunta dele e eu entendi que ele não iria resolver o problema: “O critério de atribuição de autoria é o mesmo para todas essas perguntas?“. Eu nunca mais esqueceria isso.

E te pergunto com certa angústia: PRA QUE bugar a cabeça desse jeito

…Mas para esta pergunta, sim, talvez eu tenha uma hipótese… É justamente porque às vezes é difícil que haja um consenso em todo e qualquer contexto para um mesmo objeto. E a consequência é: muitos problemas

Exatamente por isso precisamos entrar em um acordo sobre o que é um autor para depois pensar em que cenário esse conceito vai se aplicar, para só então tentar resolver os muitos problemas, como o de direitos autorais, por exemplo, no caso dos outputs da inteligência artificial generativa.

E então… Quem é o autor no caso do uso da inteligência artificial?

Créditos da imagem: Kauê Peinado para Futuro Relativo

Também buscando respostas, vou colocar umas ideias na mesa… 

Para determinar o autor de uma imagem gerada por inteligência artificial pode-se levantar a hipótese de que, ainda que esta imagem seja inédita, sem a ideia de um ser humano que insere o input, o prompt, não haveria uma nova obra, um output. Ainda que quem escrevesse o prompt referenciasse criadores de obras já conhecidas, ou que esse seu prompt fizesse com que a máquina recrutasse dados desses referenciais de criadores anteriores, invariavelmente é necessária uma construção criativa textual para solicitar algo à máquina, certo? Então o autor seria quem deu o input?

 Nesse caso, o que é a IA? Um instrumento? O problema então pode ser o tipo de interação do homem com o instrumento, uma vez que na inteligência artificial parece que o instrumento e o processo de criação se fundem, diferente do que acontece na interação do ser humano com outro instrumento como uma tela ou um pincel, por exemplo. Sem a solicitação por meio de um prompt, feito por um ser humano, a geração da imagem não se inicia, mas a interação pode parar aí e a obra sai, diferente do que acontece com a tela e o pincel, onde precisa haver uma simultaneidade de ação, do humano e do instrumento, onde o segundo é comandado pelo primeiro.

…Mas então poderíamos ver a máquina como um instrumento com certa autonomia e com mais um “plus”, um instrumento dotado de uma criatividade a partir da nossa criatividade? E não sendo a inteligência artificial um ser humano a quem atribuir a autoria, aos programadores dos algoritmos?

…Mas se a ferramenta de inteligência artificial for considerada só um instrumento como qualquer outro para a produção de imagem, como um pincel ou uma tela, isso exclui o caráter de autoria da máquina. E então a autoria vai para quem? Para quem escreveu o prompt que teve a ideia textual? Mas se o autor é quem executa o processo de criação, a máquina não seria, em alguma medida, autora? Ou o autor é sempre quem teve seus dados coletados pela máquina ou referenciados pelo ser humano que fez a solicitação à máquina?

As respostas possíveis sobre quem é o autor da imagem gerada pela inteligência artificial generativa transitam entre quem escreve o prompt, o autor da obra que é referência para a máquina e a própria máquina. E nas três hipóteses reconhecemos o peso da criatividade e das referências… Então, no fim das contas, quem tem os direitos e deveres sobre o output?

Isso pode depender do que vamos assumir sobre o que é a inteligência artificial nesta proposta: Se ferramenta, se processo e, no limite, se criatividade

…Parece estar só complicando, né?  E está mesmo, por isso fica claro porque existem tantos problemas.

O problema da autoria de imagens de inteligência artificial no ambiente acadêmico

Ambientes rigorosos como o acadêmico não ignoram essa complexidade. Quer ver?

Recentemente, foram publicadas algumas resoluções no site da Nature, na seção de políticas editoriais, sobre o uso de imagens geradas por inteligência artificial em suas revistas de acesso aberto. A Springer Nature, responsável pela revista Nature, é uma das editoras científicas mais renomadas do mundo, e hoje tem instruções precisas para suas publicações:

“…Embora as questões legais relacionadas a imagens e vídeos gerados por IA permaneçam amplamente sem solução, os periódicos da Springer Nature não podem permitir seu uso para publicação.” 

O que mais chama atenção: “sem solução“. Admitir isso é admitir que, mesmo que não haja um consenso, é preciso partir de algum lugar para tomar uma decisão. Algum critério precisa ser adotado para que se possa agir, ainda que esse critério seja passível de revisão. E isso demanda que as premissas e o objeto para tentar resolver os problemas estejam muito bem definidos para que uma análise faça sentido, ainda que restrita a um determinado contexto.

Para mostrar como é importante ter os termos bem definidos, antes da deliberação sobre este caso específico, a Nature deixa claro o que é um autor para eles, e que é a partir da definição deste objeto que se estabelece o critério que adotam para sua decisão no momento, definindo que a autoria é atribuída dando crédito pelas contribuições de um pesquisador para um estudo, sobre quem incide responsabilidade pela produção. Argumentos suficientes ou não, para o caso específico, demonstram como chegaram às decisões.

Destaque para o que eu disse: “no momento“.

Em sua página de políticas editoriais, a Nature se compromete a revisar essa política regularmente e a adaptar se necessário. Que alívio! Porque não tem como ter algo definitivo na velocidade com que as coisas estão mudando, né?! E se isso atrapalhar os trabalhos acadêmicos? A academia não fica ilesa desses problemas todos. 

Eu falei que não ia oferecer respostas desde o começo…

A conclusão sobre quem é o autor parece ficar em suspenso indefinidamente, e este então parece ser o problema primeiro, uma vez que a percepção de cada indivíduo, enquanto subjetiva, sobre o que é um autor vai ser diferente nesses casos de obras geradas pela inteligência artificial. Ou seja, uma resposta aceita em qualquer contexto sobre o objeto em discussão, até agora, não parece ser possível.

E a confusão não acaba… Porque por mais que exista uma noção subjetiva sobre quem é o autor desses outputs das ferramentas de IA, os problemas estão aí e são bem objetivos.

Quem tem direitos? Deveres? Como conciliar? Como fazer as diferentes realidades coexistirem para que sejam estimulados mercado e artistas? Como oportunizar formas de expressão para os artistas, produtos para o mercado e deleite para os admiradores da arte, sem que haja perdas para qualquer um dos lados? Como não desmotivar a produção da arte nem a comercialização dela? Como fazer essa demanda aumentar para que a arte esteja mais presente na vida e na economia?

Tem muitas perguntas mais, e acho que ninguém tem essas respostas de forma definitiva. Mas tem algo importante aí…

Parece que antes de pensar como deliberar sobre os problemas, é preciso deixar as premissas muito claras, – objeto, contexto, critérios – , para depois submeter a questão de direitos autorais (e outros problemas que possam surgir) à análise. Olha o caso da Nature.

Se a coisa for bagunçada, acentuamos os abismos entre artistas, consumidores da arte e amantes da arte… que tristeza seria um mundo com menos arte, com artistas sem poder expressar sua identidade, ou um mercado frio, desestimulado de incluir mais arte nas suas práticas… 

A ideia é, antes de tudo, achar um lugar comum, para que cada parte cumpra adequadamente seus direitos e deveres. E talvez, de fato, tudo comece quando tentarmos primeiro concordar sobre as premissas… 

Sei lá… Pode ser uma alternativa para um uso responsável da inteligência artificial relacionada à arte? Não sei, mas espero que exista uma. Deve ter um jeito para tudo isso…

Flaw Bone

Flaw Bone

Pesquisadora, curiosa e comunicadora | Filosofia Prática - UFRJ 🙃

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