Por mais que a neurociência explore a fundo o cérebro humano, muitas respostas ainda são mistérios, e novos mecanismos vêm à tona para investigar essa estrutura tão complexa.
Já pensou em transferir um cérebro para um computador? Não, não é uma ficção científica maluca, trata-se de uma gigantesca aventura europeia de 600 milhões de euros!
Uma década atrás, a União Europeia decidiu investir uma boa grana – €600 milhões – no Human Brain Project (HBP – Projeto Cérebro Humano), com o ambicioso objetivo de modelar todo o cérebro humano em um computador.
Com 500 cientistas envolvidos, o projeto da neurociência que já dura 10 anos apresentou resultados realmente impressionantes, a partir da criação de mapas 3D detalhados de mais de 200 regiões cerebrais, usando supercomputadores para simular funções do nosso cérebro, como memória e consciência. Segura aí que isso não é um episódio de Black Mirror.
Thomas Skordas, vice-diretor-geral da Comissão Europeia em Bruxelas, estava animado ao lembrar que muita gente inicialmente não acreditava na ideia. Mal sabiam eles que supercomputadores em breve seriam usados para emular nossa massa cinzenta!
Nessa trajetória desde o início do projeto tudo saiu como planejado. Afinal, recriar o cérebro humano não é uma tarefa fácil, por mais que a neurociência disponha das mais avançadas tecnologias. O HBP, como qualquer projeto ambicioso, tem seus desafios.
Houve muitas críticas, não conseguiram simular o cérebro inteiro e alguns até compararam os resultados a um mosaico: muitas peças bonitas, mas sem uma imagem unificadora. Yves Frégnac, membro do HBP, cientista cognitivo e diretor de pesquisa da agência nacional francesa de pesquisa CNRS, em Paris, colocou destacou: “Não vejo o cérebro; vejo pedaços do cérebro.”
Mas, em meio às controvérsias e desentendimentos, os diretores querem avançar no entendimento do cérebro através de uma plataforma virtual chamada EBRAINS, que se trata de um conjunto de ferramentas, dados e simulações com as quais os pesquisadores do mundo todo podem fazer simulações e experimentos digitais. Um membro do conselho do HBP, Viktor Jirsa, neurocientista da Universidade Aix-Marseille, na França, declarou: “Hoje, temos todas as ferramentas em mãos para construir um verdadeiro gêmeo digital do cérebro.”
A neurociência tem avançado muito em entender o cérebro humano, até mesmo transtornos que pareciam já estar claros como o narcisismo. Clica aqui para entender o que a ciência tem a dizer sobre o assunto!
O avanço da neurociência mesmo diante de desafios
O HBP enfrentou muitos desafios, dentre eles a substituição da diretoria por má decisões, que somada a outras controvérsias, fez com que o ceticismo no projeto se alastrasse entre os cientistas. E enquanto tudo se desenrolava, outros projetos importantes nasciam ou eram acelerados em outros lugares do mundo como Estados Unidos, Japão, Austrália e Coréia do Sul, – todos que estão se desenrolando durante os anos.
A despeito dos problemas, as realizações do projeto são muito importantes para a neurociência. Enquanto as questões complicadas se desenrolavam, a ciência começou a ganhar velocidade com resultados como o lançamento de seis plataformas operacionais especializadas, que contemplavam áreas como simulação cerebral, análise e computação de alto desempenho e neurorobótica.
Através da plataforma do EBRAINS, cientistas disponibilizaram um Atlas do Cérebro Humano (Human Brain Atlas), o que permitiu a descoberta de seis novas regiões cerebrais, que contribuem para a memória, linguagem, atenção e processamento musical. Esse tipo de Google Maps do cérebro humano também revelou como as mudanças na expressão gênica associadas à depressão estavam ligadas a aspectos estruturais e funcionais em uma região do córtex frontal.
E não é só isso. Os pesquisadores do HBP trabalharam em algoritmos que poderiam gerar mapas detalhados a partir de simples imagens de microscopia: em um projeto, detalharam o hipocampo (essa é a parte do cérebro essencial para a memória), mapeando 5 milhões de neurônios e 40 bilhões de sinapses!
O ousado projeto da neurociência também tem desenvolvido modelos cerebrais personalizados para ajudar a tratar epilepsia e doença de Parkinson através de uma técnica chamada gêmeos cerebrais digitais, em que, de uma maneira bem simples, significa comparar um cérebro modelo ao cérebro de um indivíduo. Esses avanços da ciência são atribuídos às possibilidades proporcionadas pelo EBRAINS.
A doença de Parkinson tem sido alvo para uso da Inteligência Artificial, que detectou com precisão o declínio cognitivo. Clica aqui e dá uma olhada nas perspectivas otimistas a partir disso!
O HBP teve suas falhas e alguns destacam que resultados científicos do projeto de 10 anos pareciam fragmentados e que a razão disso era falta de foco que acarretou uma falha em reunir a comunidade da neurociência em um objetivo claro e comum, uma vez que não tinha uma lista de perguntas específicas a serem respondidas, só um objetivo geral de “entender o cérebro humano“, o que não dava um direcionamento muito preciso para os pesquisadores.
O legado para a neurociência
O HBP chega ao fim em setembro de 2023, deixando para trás uma série de questões, conquistas e uma plataforma ambiciosa, a EBRAINS, que pode moldar o futuro da neurociência e já está sendo usada para entender como o cérebro pode responder a alguns estímulos específicos e para desenvolver robôs que imitam o cérebro, por exemplo.
Timothy O’Leary, neurocientista computacional da Universidade de Cambridge, Reino Unido, que não faz parte do HBP, diz que embora o HBP tenha tido uma trajetória tumultuada e que não exista clareza se “teria sido financiado sem algum tipo de objetivo ridiculamente ambicioso associado a ele”, o projeto conseguiu unir uma comunidade de cientistas em torno de alguns objetivos em comum como os agora apoiados pela Comissão Europeia e os Estados-Membros sobre a saúde cerebral, que se concentrará na utilização de modelos cerebrais personalizados para promover a descoberta de medicamentos e melhorar tratamentos.
A neurociência tem muito a se beneficiar com a EBRAINS, que ainda não tem origem de novos financiamentos definitivamente decidida, e que pode contar com uma combinação de financiamento privado e apoio financeiro de países individuais da União Europeia.
Seja em mega-projetos ambiciosos ou ciência focada em pequena escala, a Europa parece pronta para continuar avançando significativamente na neurociência através da observação mais profunda do cérebro humano.